Monteiro Lobato: da morte às origens

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(O judeu Monteiro Lobato, aprendendo a ler e escrever com meu pai…)

POR ANTONIO SILVIO LEFÈVRE

 

Desde o final de 2018, 70 anos depois da morte de Lobato, quando sua obra entrou em domínio público, eu, como intérprete do Pedrinho na primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo (TV Tupi, 1954) fui chamado a participar de muitas conferências, debates e “lives” sobre sua vida e sua obra.

Por mais que já se tenha escrito e debatido sobre Lobato e sua obra, sempre pude revelar fatos inéditos, que o convívio intenso com a herança cultural lobatiana desde a minha infância me trouxe a ventura de conhecer.

Conto aqui o que aconteceu no dia da morte de Lobato (4 de julho de 1948) quando, no velório, seu sócio, Artur Neves gritou “Manda chamar o Brecheret!” para que o já famoso artista tirasse um molde do rosto de Lobato para esculpir uma máscara mortuária.

Mais recentemente, a amiga Márcia Neves Bodanzky, esposa do amigo cineasta Jorge Bodanzky e filha do Artur Neves, passou a mim uma descoberta de arrepiar… um exemplar até então soterrado da edição especial da revista Fundamentos, da Editora Brasiliense, publicada em setembro de 1948 e totalmente dedicada à memória de Lobato, recém-falecido. E eis que, entre os artigos de muitos famosos, deparo com um de meu pai, o médico neurologista Antonio Branco Lefèvre, com o título “Lobato diante da morte”. E nele meu pai relata o que ocorreu num atendimento a Lobato, logo após ele ter tido um pequeno AVC.

 

“Quando foi que morri”

“Quando foi que morri?”, perguntou Lobato calmamente, imaginando que já estivesse em outro mundo. Prosseguindo o exame do paciente, meu pai verificou que embora ele estivesse bastante fluente na fala, simplesmente não conseguia ler nem escrever nenhuma palavra!

E meu pai explica no artigo: “Tratava-se de uma sequela que é bastante rara na patologia neurológica: uma alexía, sem o menor componente afásico, apresentando, entretanto, uma agrafia bem nítida. Estranha esta coincidência. Um cérebro como o de Lobato atingido exclusivamente em duas funções que eram nele tão extraordinariamente desenvolvidas: a leitura e a escrita”.

E sobre a reação de Lobato, comentou: “Tudo isto pode levar a crer que fosse enorme seu desespero em face desta situação. Poucas vezes entretanto o encontrei irritado com sua moléstia. É verdade que a recuperação foi se fazendo tão rapidamente, que o doente, sentindo os seus progressos diários, sabia que a cura estava próxima, como de fato se deu em duas semanas, aproximadamente.”

Já nos primeiros dias, em que meu pai fazia exercícios para ensinar Lobato a ler e a escrever, o aluno, jocosamente lhe perguntou: Quando é que vou passar para o segundo ano?”

Infelizmente, quando Lobato teve um segundo AVC este o fulminou instantaneamente. “Quando cheguei à sua casa naquela fria madrugada de domingo, ele já estava morto, com uma estranha expressão de calma e serenidade na face”, escreveu meu pai.

Da morte as origens de Lobato

Além de tudo o que me foi perguntado sobre Lobato nas conferências e debates, que se estenderam até agora, na celebração dos 70 anos da TV no Brasil, em que foram relembradas as várias apresentações do Sítio do Picapau na TV, desde a primeira, da qual participei, houve uma que me levou ao extremo oposto da sua morte…a busca das suas origens familiares.

Tudo começou com uma conversa minha com sua bisneta, Cleo, que vive atualmente nos Estados Unidos e de lá administra um site criado para a memória de seu bisavô, o www.monteirolobato.com

Cleo é filha de Joyce, neta de Lobato, por sua vez filha de Martha, uma das duas filhas mulheres de José Bento Monteiro Lobato, como era seu nome completo. Formada em História pela USP, Cleo se interessa muito pelas origens da família e me relatou que sua mãe, Joyce,  lhe disse ter o sentimento de que a família era de cristãos-novos, ou seja, de judeus conversos para escapar da Inquisição. Possivelmente essa curiosidade pelo lado judaico tenha sido estimulada pelo fato de Joyce ter-se casado com um judeu polonês, Jerzy Matheusz Kornbluh, pai de Cleo.

Quando lembrei Cleo que minha sogra, Anita Novinsky, que havia sido sua professora na História da USP, é a maior especialista no tema da Inquisição e dos cristãos-novos no Brasil, ela ficou muito entusiasmada e de pronto me mandou uma árvore genealógica da família Lobato, elaborada por uma equipe da UNICAMP, sob a direção da Marisa Lajolo, renomada estudiosa da obra de Lobato. E me mandou também um pequeno tesouro, que é o “Caderno de Dona Purezinha”, em que a dedicada esposa de Lobato faz revelações extraordinárias sobre a vida e obra do marido, mas também muitas sobre as origens da família.

Pois bem. Não foram necessários estudos históricos aprofundados para que Anita me assegurasse que, sem dúvida alguma, a família toda de Lobato é de cristãos-novos, portanto judeus convertidos. Já numa simples análise das últimas gerações lobatianas, observou que José Bento Monteiro Lobato tinha duas irmãs com prenomes tipicamente judaicos: Esther e Judith. E ele mesmo deu nomes judaicos para suas duas filhas: Ruth e Martha (mãe da Joyce)

Ora, é sabido que esses nomes não vêm por acaso… sendo evidente que tanto o pai de Lobato, como ele mesmo, os tinham no seu inconsciente cultural.

 

Os ancestrais cristãos-novos de Lobato

E quando lembrei a Anita que a família de Lobato havia se estabelecido em Taubaté o diagnóstico, então, foi fulminante pois, segundo, ela, Taubaté foi um dos mais importantes locais de partida dos bandeirantes para todo o Brasil. E, sabidamente, os bandeirantes eram em sua quase totalidade cristãos-novos, alguns como Raposo Tavares, com ancestrais queimados pela Inquisição e que, por isso mesmo, nutriam um ódio figadal contra os jesuítas, que combateram na “Guerra das Missões’”

“Monteiro Lobato era descendente dos primeiros fundadores de Taubaté, Pinda, e Paraibuna, gente que teve desbravadores do sertão e sempre as rédeas do Governo que se difundiu pelo seus descendentes,”, escreveu Purezinha no seu diário. Tanto que entre os nomes que aparecem na genealogia da família Lobato está o do bandeirante Pedroso Alvarenga. Sobre Luiz da Costa Cabral, um ancestral dos Lobato, Purezinha conta que “em companhia de Borba Gato, foram portadores de valiosos presentes à D. João IV”

Voltando mais atrás na história encontrei um ancestral Lobato que ficou famoso por ter renegado a conversão forçada ao catolicismo e voltado às raízes judaicas. Segundo relata Meyer Kayserling em seu clássico “História dos judeus em Portugal”, Diogo Gomes Lobato (prenome original Abrão Cohen) tinha um primo, Paulo de Pina, que pretendia se tornar monge e que Diogo aconselhou fortemente a não fazê-lo e voltar à religião materna. “Pina viajou com seu parente Lobato para o Brasil e de lá para Amsterdão, onde se tornou fiel adepto do judaísmo”

Ficando mais do que claras as origens judaicas dos Lobato pesquisei eventuais referências do próprio Lobato a este fato. Nada encontrei nos seus textos em relação às origens mas sim muitas referências aos judeus. Sempre muito eloquentes em termos de admiração e respeito.

Lobato e os judeus

Numa entrevista concedida ao jornalista Nelson Vainer nos anos 40, ainda durante a guerra, Lobato dá um depoimento que merece ter um trecho reproduzido por sua expressividade e, incrível, por sua grande atualidade:

“O maior drama da História temo-lo na vida dos judeus, a raça que, como disse Heine, criou para si mesma uma ‘pátria portátil’ e talvez por essa razão se tornasse indestrutível – e tão perseguida pelas raças de pátria fixa. Várias circunstâncias tornaram o judeu um povo à parte e eterno aluno da Escola da Adversidade. E se o cursar essa escola durante séculos traz realmente superioridade, o povo judeu tem razão no alto juízo que faz de si mesmo, porque nenhum outro fez na escola terrível curso tão longo. Daí o aparentemente estranho fenômeno de um povo tão pequeno em número ter produzido grandes homens e grandes coisas em proporção tremendamente superior à dos demais povos, a ponto de tornar-se um eterno “caso” no mundo”.

O que mais é preciso para sabermos que Lobato, além de ser judeu pela origem, se sentia também como um judeu e fazia um discurso próximo do sionismo?

Fiquei curioso apenas por saber o que Lobato sentiu quando, exatamente dois meses antes da sua morte, em 14 de maio de 1948, era fundado o Estado de Israel e os judeus não precisaram mais ser “portáteis”.

 

  • ANTONIO SILVIO LEFÈVRE – é sociólogo (Université de Paris), editor e livreiro. Interpretou Pedrinho na 1ª adaptação do “Sítio do Picapau Amarelo” para a TV, em 1954. Veja no Museu da TV.
  • FONTE DAS IMAGENS: http://www.monteirolobato.com/