CINEMA – Coringa e uma sociedade tão perversa quanto o próprio vilão

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Essa é a primeira de tantas mensagens passadas durante as duas horas de projeção: você não está diante de um filme de herói, muito menos de vilão. O que temos aqui não é uma história de origem nem uma produção com arcos, ganchos ou referências.

O longa de Todd Phillips (Se Beber, Não Case) é uma viagem cada vez mais visceral e profunda em um universo em que a loucura se encontra com a crueldade. Da mesma forma que esse não é um filme de herói, o mundo de Coringa também faz questão de nos mostrar que este é um universo sem salvadores da pátria nem vigilantes virtuosos, o que só faz com que as coisas fiquem ainda mais decadentes e perversas na medida em que o ser humano é quebrado, pisoteado e esmagado a ponto de enxergar uma saída na barbárie.

Coringa também não é o filme que vem sendo comentado internet afora, um tipo de crítica fruto de uma análise apressada baseada em trailers editados para causarem uma comoção que não condiz exatamente com o resultado. Não é sobre um fracassado com uma arma, buscando pela violência encontrar seu lugar ao mundo. É, também, o contrário daquilo que foi eternizado por Heath Ledger em outra interpretação brilhante do vilão. É algo muito, muito pior, capaz de causar perturbação e desconforto a cada cena.

Joaquin Phoenix é quem carrega todo o peso nas costas, e isso transparece com as múltiplas nuances de um personagem extremamente denso estando à flor da pele. O filme, como já era de esperar, é dele, e ao entregar um roteiro igualmente bem escrito, apesar de ter trechos desnecessariamente expositivos, o ator mais do que merece o seu lugar em um panteão do qual outros grandes nomes do cinema, de cara pintada de branco e boca vermelha, já fazem parte.

 

A atuação é tanto física quanto vocal e psicológica, com Arthur Fleck se tornando, a olhos vistos, um monstro cada vez mais asqueroso na medida em que passa pelo moedor de carne de uma Gotham City extremamente problemática. Essa é uma das tantas contradições de um filme que também vai mostrando um protagonista cada vez mais alinhado e seguro de si, mesmo que mergulhado nas próprias loucuras, na medida em que as pauladas se tornam mais fortes.

Escrever sobre Coringa é difícil e, mais do que isso, descrever a atuação de Phoenix é ainda mais complicado. Tudo muda a cada cena e o ator mostra uma versatilidade absurda e um domínio ainda mais incrível de seu personagem, assemelhando-se a um monstro que parece prestes a sair da jaula. São diversos os momentos em que esperamos a explosão, sem que ela venha, enquanto em outros, ela surge sem avisar ninguém.

A instabilidade é a característica de um louco, que na tela de cinema aparece debaixo do rolo compressor de um mundo cinza que vai se tornando cada vez mais sombrio e desesperador. As pancadas vêm de todos os lados, de onde todos poderíamos esperar, mas também de onde jamais gostaríamos que viessem. Entretanto, não são estas que doem mais, afinal de contas o couro já está curtido. Em um mundo que pode ser cruel, para muita gente faz todo o sentido ser cruel de volta.

Não que o roteiro escrito pelo próprio Phillips ao lado de Scott Silver (O Vencedor) justifique a escalada da violência pela falta de empatia ou pelo fracasso de seu protagonista. Na verdade, é exatamente o contrário, com Coringa fazendo com que o espectador se sinta enojado o bastante para não ter o menor tipo de empatia com o personagem.

É justamente por conta disso que é preciso abordar o elefante na sala logo de início e jogar a discussão que tomou conta da internet nas últimas semanas para escanteio. Como o filme deixa claro, o Coringa não é alguém em quem se inspirar ou glorificar, pelo contrário, o personagem é o refugo de uma sociedade que destrói a tudo e a todos, menos a um grupo de privilegiados.

Esse não é o Palhaço, o Bobo, o Joker que terá sua imagem enquadrada na parede da hamburgueria ou será o queridinho dos cosplayers nas grandes convenções do mundo geek. Este é um Coringa que o espectador, na realidade, vai torcer para que alguém o faça parar antes que o pior aconteça. Mas como o filme deixa claro tanto por seu posicionamento temporal quanto pelo próprio tom, não estamos em uma era de heróis. Não há salvação a caminho, a não ser, talvez, para um grupo exclusivo e privilegiado.

Ele aparece de diferentes formas, desde a empáfia de um Thomas Wayne (Brett Cullen) que diz querer ajudar as pessoas enquanto chama todo mundo de palhaço ou na breguice do apresentador de talk show Murray Franklin (Robert DeNiro). É ele, inclusive, quem protagoniza ao lado de Phoenix um dos momentos mais pesados e cheios de significado do longa.

É pela boca do personagem que, em determinado momento do longa, o espectador vai se sentir falando, enquanto enxerga um desfecho claro e totalmente desesperador se aproximando. É uma batalha perdida, sabemos assim que ela começa, o que só piora as coisas.

No discurso revolucionário se encontra mais uma das tantas facetas do que provavelmente é o longa de quadrinhos mais denso de todos os tempos, se é que, efetivamente, podemos categorizá-lo dessa forma. Talvez não, afinal de contas as páginas de papel ainda são coloridas e representam um portal para a fantasia, enquanto aqui, por mais que o filme seja tecnicamente impecável, só nos resta o nó na garganta.

Sobram risadas e faltam piadas durante as duas horas de projeção, com o que talvez seja a única situação humorística sendo colocada exatamente em um momento no qual o espectador não tem mais a menor vontade de rir. Como dito, a ideia da qual tanto se falou na internet antes da estreia pode até colar, mas está apenas na superfície do texto do longa e pode soar até mesmo como um desserviço, pois discussões maiores estão envolvidas aqui.

Coringa é uma demonstração crua e visceral do perverso. O maior problema apresentado por ele não é a ideia de um maníaco ser enaltecido por seus atos violentos, mas sim pelo fato de sermos parte de uma sociedade tão doente e afundada na lama que o maníaco acaba sendo glorificado justamente por ser quem é.