Antoninho Rapassi
Uma rolinha teimosa e apaixonada acorda junto com o nascer do Sol de verão e emite seus arrulhos numa melódica cadência, que é a sutil linguagem do seu amor. Seria para ele, o irmão Sol ou seria para “ele” com quem vive acasalado? O certo é que este terno arrulho me inspirou neste final de madrugada a escrever esta crônica, tendo-me ocorrido lembranças de que eu, na infância despreocupada, também imitava os sons lascivos das rolinhas.
A Rádio Clube de Votuporanga surgiu do espírito visionário do jornalista Nelson Camargo, lá pelo ano de 1957, se a memória ainda me é fiel. Dentre todos os locutores que sacudiram a vida sonolenta, até então, da nossa cidade, um se destacou no superlativo e foi incomparavelmente o mais popular, o mais querido, o mais ouvido e outros mais. Chamava-se Jaime Cunha e até o seu figurino ajudava para angariar a simpatia geral: gordinho, porém ágil e com um sorriso maroto que não se lhe desgrudava da face irrequieta. Sua voz de falsete dependia da ocasião. Tanto podia ser clara, límpida, firme e avolumada, como também podia ser cava, titubeante e fina. Às vezes se preciso fosse, tartamudeava. Animava o auditório sempre repleto no edifício Budin, como se fosse o nosso César de Alencar, através das ondas médias da Rádio Clube de Votuporanga. E tinha mais o que tirar daquele versátil radialista, responsável pela alegria de um povo que foi brindado com esta concorrente da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, levantando sua torre nesta região da alta-araraquarense. O programa dominical de auditório do Jaime Cunha era delicioso. Começava ao meio dia e por ele desfilavam as vozes sonoras dos cantores e das cantoras que chegavam a ter seus fãs clubes. A “Bonequinha Loira” era a Claudenice Soares Públio, assim batizada pelo inspirado animador, transformada em nossa Emilinha Borba ou na Marlene, as duas famosas cariocas “Rainhas do Rádio”, cujos reinados eram mesmo de um absolutismo sem contestação. Aqui em Votuporanga a nossa festejada vocalista vivia com seus tímpanos aturdidos pelas frequentes vibrações da sua claque frenética. Se quiserem saber quem se destacava no lado masculino, vai lá o registro: Darcy Cecchini na bateria, Edward C. Costa, o Costinha, como cantor à Orlando Silva, ora à Chico Alves. Vários músicos da Orquestra Guarany faziam parte do Regional desta emissora, não sendo perdoável ignorar os nomes do violonista Amilar Riva ou do Tesourinha nos domínios do Sax. O compenetrado Oliveira na mesa de som tratava os discos com uma dedicação de monge e daqueles a quem controlava no estúdio era, como se fosse, um capitão sisudo diante de uma tropa obediente e temerosa.
O Jaime Cunha morava na Rua Pará e dele fiquei amigo desde quando uma sua cunhadinha loira veio passar as férias em sua casa. Inicialmente tímido, comentei meio sem jeito sobre o seu programa vespertino chamado “Ranchinho Alegre”, onde ele era o caipira que, sentado na soleira da tulha contava “causos” e mais “causos” entre as gargalhadas gravadas puxadas, pelo atento Oliveira na mesa de som.
E aconteceu de maneira inesperada, brotando do fundo da alma uma sugestão inédita, mas muito adequada: sugeri ao Jaime fazer imitações de vários tipos de animais, pássaros, aves e réptil. Esta onomatopeia veio a calhar, uma vez que lhe prometi fazer algazarra no terreiro do “Ranchinho Alegre”. Assim, quando terminava a “Hora do Angelus” eu saia correndo da minha casa e chegava esbaforido para começar a brincadeira: o galo batia as asas e cantava, o cão latia, o gato miava, o porco grunhia, a porteira batia forte no mourão, os cascos dos cavalos eram tirados de duas metades do coco da Bahia, anunciando a chegada dos tocadores das modas de viola.
E eu lá fazendo o que havia aprendido por acaso, que era imitar a voz dos bichos bípedes e quadrúpedes. Comecei imitando os bípedes: o homem da vassoura, nesta época governando o estado de São Paulo (de quem eu nunca gostei e dele me desforrava), o Adhemar de Barros com sua voz anasalada e conversas jocosas, irreverentes e a quem os votuporanguenses dedicavam sua afeição e fidelidade nas urnas. Dos bichos, a imitação do cachorro, do gato e do porco morrendo sob o aço duro do punhal, eu conseguia impressionar e colecionar elogios e até convites houve para encenar hipotéticas situações noturnas nos chiqueiros, o que fiz muitas vezes para a alegria dos que souberam, ao final do burlesco teatrinho tratar-se de uma pegadinha inocente.
Quanto ao Jaime Cunha, as minhas aparições se deram ocasionalmente entre 1957 e parte de 58. Engraçadas eram as brigas entre gato e cachorro que eu inventava favorecendo a selvageria do felino. Pelos ganidos do cachorro em retirada, a mordida havia sido pra valer. Naquela época estes dois quadrúpedes não eram os amigos que hoje se revelam ser, talvez para mostrar que eles são outros tipos de gente, bem melhores do que nós. E a rolinha que me deu a inspiração para fazer esta crônica, eu a imitava nos momentos de uma moda de viola bem langorosa, fazendo uma concavidade com as mãos para obter seus arrulhos, numa melódica cadência, que é a sutil linguagem do seu amor.-
27 de Novembro de 2019