Ex prefeito de Tanabi morre com recorde brasileiro

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Foram 32 anos, nove meses e 13 dias de "sobrevida" com o novo coração

 

Waldir de Carvalho, o brasileiro que viveu mais tempo com o mesmo coração após transplante, feito em 1986, morre aos 83 anos.

O que dá pra fazer em 32 anos? Waldir de Carvalho foi enterrado nesta quarta-feira, 12, sob o título de pessoa que viveu mais tempo com um coração transplantado no Brasil. A cirurgia de Waldir aconteceu em 28 de agosto de 1986, quando o advogado e ex-prefeito de Tanabi achava que ia morrer, mas pediu que Deus o segurasse mais neste mundo. Pois é.

Nascido em Bebedouro, mas morador de Tanabi desde os 5 anos, Waldir faleceu, aos 83 anos, na noite desta terça-feira, 11, durante uma sessão de hemodiálise no Hospital de Base de Rio Preto – há dois anos, os rins começaram a falhar. Ele estava a poucos meses de quebrar o recorde mundial de vida com o mesmo órgão após um transplante de coração, atualmente do britânico John McCafferty, que faleceu em fevereiro de 2016 após 33 anos, três meses e 18 dias da operação, feita em 20 de outubro de 1982.

De acordo com Paulo Manuel Pego Fernandes, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos e chefe das equipes de transplante de pulmão do Incor e de coração do HCor, o tempo de sobrevida de Waldir com um único órgão pode ser considerado um “ponto fora da curva”. Muitos pacientes necessitam de um novo transplante antes deste tempo. “Habitualmente a sobrevida não costuma ser tão longa, pelo menos não com o mesmo órgão. É uma longevidade bem boa”, considera. “Depende de compatibilidade do coração que ele recebeu, de questões imunológicas, de rejeição, tamanho.”

A saga de Waldir pela vida começou em 1982, quando era candidato a prefeito de Tanabi. Depois de algumas horas de pescaria, retornou para o rancho onde estava hospedado e sentiu uma forte dor no peito. Médicos do Instituto de Moléstias Cardiovasculares (IMC) de Rio Preto diagnosticaram miocardiopatia, doença que deteriora o músculo do coração. Ele ganhou as eleições, mas não conseguiu assumir o cargo de prefeito por um tempo.

Foram necessárias três pontes de safena, mas a equipe do Incor, em São Paulo, disse a Waldir que somente um transplante salvaria sua vida. Na época, não havia oferta do procedimento em Rio Preto.

Em uma entrevista, o advogado contou que sentiu um frio na espinha, mas não desistiu da vida: alugou um apartamento ao lado do hospital e lá permaneceu por um ano e meio. “Minha cama parecia uma nave espacial, de tanto aparelho”, recordou. Seu estado de saúde era tão grave que chegou a receber a visita de pastores e padres. No dia 28 de agosto de 1986, o católico Waldir recebeu a notícia de que seu coração estava a caminho. Viria de um rapaz de 18 anos, funcionário de uma empresa assaltada na capital. O jovem se recusou a entregar o malote de dinheiro da firma e foi baleado na testa. Morreu na hora.

A cirurgia começou na noite do mesmo dia 28. Durou dez horas. Waldir completou os 51 anos no dia 31 de agosto desacordado. Despertou quatro dias depois do transplante e chorou ao sentir o “tum-tum” do novo coração.

Voltou para Tanabi e assumiu seu mandato – a administração da cidade estava sob os cuidados do vice e da esposa, Magaly. Foi prefeito até 1988 e advogou até cerca de dois anos atrás, quando os rins começaram a falhar. Chegou a tocar quase 200 processos ao mesmo tempo e, mesmo tomando diversos remédios para evitar a rejeição do órgão, chegava a nem se preocupar com o coração. “Depois que ele saiu da política, montou o escritório dele. Era criminalista, gostava de fazer júri, porque a parte do júri é um teatro, e ele adorava”, brinca o genro Marcos Teixeira, odontologista de 58 anos.

Os rins deram sinais de fraqueza em 2017 e Waldir ficou debilitado. Segundo o médico Paulo Manuel, a doença dos rins é um efeito dos medicamentos que os transplantados tomam, os imunossupressores, para evitar a rejeição do órgão. “Diminuem a função renal, então para o paciente que tem tantos anos de remédio de uso diário aumenta o risco de ter algum problema.”

A família encara o recorde de Waldir com naturalidade, segundo Marcos. Foram 60 anos de união com a esposa, Magaly Garcia Carvalho, com quem teve três filhos: Waldir, Soraya e Débora, que lhe deram nove netos e cinco bisnetos. Em 2017, o filho Waldir faleceu, vítima de um infarto fulminante, o que pode ter piorado o estado de saúde do pai.

“Seu Waldir era um cara de alto astral, brincalhão, fazia gozação com tudo, não levava nada muito ao pé da letra. Os netos têm um amor incrível por ele. Ele é muito querido em Tanabi também”, diz Marcos.

Waldir foi velado na Câmara Municipal e sepultado no Cemitério da Igualdade, em Tanabi.

Transplante desde 2000

O Hospital de Base começou a oferecer o transplante de coração em 2000. Desde então, foram realizadas 103 cirurgias do tipo na instituição. O serviço ficou desativado de 2014 a 2016 e retomado em 2017.

De acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), em março de 2019 havia 141 adultos na fila por um coração no estado de São Paulo. Na região de Rio Preto, 80% das famílias de potenciais doadores dizem “sim” ao pedido de transplante de órgãos.

Paulo Manuel Pego Fernandes, médico presidente da ABTO e chefe das equipes de transplante de pulmão do Incor e de coração do HCor, reforça que a vida só é possível com a doação. “Trinta anos são uma vida. Tem muitas pessoas que não vivem isso. Deu tempo de ver a família crescer, se construir em todos os sentidos, dar apoio familiar, emocional, financeiro. É importante para a sociedade como um todo”, considera.

Apesar dos avanços da medicina, nada substitui um órgão funcionando. “Se ele não tivesse recebido o coração, duraria dois anos no máximo”, afirma Fernandes.