Por Antoninho Rapassi
Com a aproximação do dia 26 de Julho, antecipo a comemoração do Dia dos Avós, este quarteto fornecedor da matéria prima que nos deu a origem. Sou daqueles que se orgulham dos avoengos e me considero altamente privilegiado pela convivência que tive com os dois casais de imigrantes que se matrimoniaram aqui no estado de São Paulo. Na Itália moravam em regiões opostas e no Brasil, seguindo a tendência da expansão da lavoura cafeeira acabaram fixando-se na região de São José do Rio Preto, onde mais tarde seus filhos namoraram e, com o casamento surgiram os descendentes destes oriundos da velha Península Itálica.
Hoje vou falar sobre o Alexandre Caselli pai de minha mãe nascido na Itália Meridional, a Magna Grécia, com as influências que marcaram a sua índole tão diferente quando faço comparações, com o Demetrio Rapacci, meu outro avô nascido na lombarda “comune di Borgoforte a destro di Pó”.
Alexandre, entre tantas historietas por nós vividas marcou sua personalidade pitoresca, como a de um rústico ator que esbanjava gestualidades teatrais. O meu avô era um homem alegre, carinhoso, careteiro e, atrás do balcão comercial da sua loja de Secos & Molhados repetia estoicamente a paciência quais monges medievais, que a clausura os sequestrou do mundo. Atendia a clientes nos espichados expedientes comerciais, sempre os mesmos clientes amorosos da garrafa e do copo, que consumiam a beatificada cachaça branca, os vinhos Quinados além do Vermute, sustentando com estas contribuições etílicas as intermináveis conversas insossas.
O meu avô materno exagerava nas suas extravagâncias, como aquela vez em que comprou toda a carga de tamancos que um vendedor de pronta entrega trazia na carroceria do seu caminhão. Feliz por ostentar o precioso estoque, estando os pares dos tamancos unidos por um barbante, considerado este como eficaz fator anticoncepcional. Eram tantos tamancos que, empilhados, entupiram completamente uma dependência da sua casa. Em outra ocasião, quando das costumeiras visitas mensais, nos deparamos com uma montanha de tomates vermelhos, perfeitos e durinhos, mas tão vermelhos e perfeitos que não comprá-los quem haveria de? Isto foi um arroubo de loucura cometido pelo calabrês romântico que era o meu avô.
Dando por concluído mais um dia, “todo ele dedicado a Nossa Senhora de Achiropita”, meu avô jantava de forma moderada e sóbria, mas antes de se deitar abraçava a sua velha sanfona Stradella Dallapé por onde seus dedos trêmulos arrancavam notas melodiosas que, bem mais tarde surpreendi-me ao ouvir sons assemelhados da autoria de Ennio Morricone na trilha sonora do Cinema Paradiso.
Chego finalmente ao ponto principal destas Memórias, abrindo as portas do meu coração e dele retirando o texto e a interpretação teatral que o meu avô encenou para mim e ao meu irmão, pelo menos duas vezes. Nunca soube se ele próprio era o autor do enredo atraente e dramático. Em minha memória permanece nítida a sua movimentação para descrever a composição das autoridades forenses, devidamente togadas. Terminada a referência do hipotético Tribunal em plena sessão, era a voz do Magistrado que ecoava naquele momento solene em que todos os olhos estavam fixos e todos os espíritos atentos. Nesta hora o meu avô tinha a palavra concedida para que pudesse denunciar um crime que o prejudicara. Empertigado, assomava-se ao parlatório e ele no papel de um velho cego, alquebrado pelos anos, elevava a sua mão direita, trêmula, bem para o alto e sem gaguejar, iniciava a sua oração pronunciando pausadamente o introito formal:
“Meritíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito” (pausa)
“O que vejo?”
“Só escuridão!”
“Onde estão os assassinos?”
“Estou cego!”
Neste momento suas mãos em arco moviam-se à procura do nada, diante do presidente do Júri. E acrescentava, esbanjando o tom patético:
“Um crime foi praticado! O castigo é clamado pelas consciências dos justos! Onde estão as faces dos criminosos? Quem são eles? Até quando abusarão da minha paciência?”
Ao dar por encerrada a rápida oração, aludindo à imaginária cegueira que privou da luz os seus olhos, a sentença exprobatória, se bem me lembra, era o pouco caso que a justiça fazia (e faz) com as pessoas humildes, dando ao poder econômico toda a austeridade da sua prevalência. O meu avô tinha razão e, possivelmente motivos para fazer no recôndito da sua loja e na presença de dois netos o seu desabafo, ao qual hoje acrescento, a seu favor, uma sentença antológica de Virgílio, o Virgílio da “Eneida” que escreveu: “A que não obrigas o coração humano, ó execrável sede do dinheiro?”
- Antoninho Rapassi é de tradicional família votuporanguense, trabalhou como Chief Executive Officer no Americana Hotel, atualmente reside em Americana (SP).