Por Nilson Laje
Há dias, quando o governo da Bielorrússia bloqueou a Internet no país, organizadores da revolução colorida que lá ocorre passaram a utilizar conexões de bluetooth para difundir contrainformação – provocações, denúncias e fake news. Tais mensagens, no atual estágio da tecnologia de monitoramento e controle da opinião pública, atendem a um mapeamento de valores, atitudes, medos e esperanças que se processou por via do refinamento de dados coletados via Internet. No caso, importa pouco o conteúdo referencial e nada o valor de verdade dos enunciados. As informações veiculadas objetivam efeito emocional, de adesão ou repulsa; visam respostas que se processam no colapso da razão, decisões imediatas. Diante de tal incontrolável avalanche de propaganda, de que vale a singela notícia que apuramos artesanalmente, o fato comprovado, a interpretação rigorosa, a opinião sincera? O discurso ético do jornalismo, oriundo da luta contra a nobreza e o Estado absolutista, busca proteção contra ações repressivas de natureza policial, jurídica ou religiosa, não contra asfixia e sedução econômica.
No Brasil, nas décadas de 1950 e 1960, houve uma imprensa atenta à realidade do país, graças a uma dinâmica de contradições que se rompeu; hoje, o fluxo de informação da grande mídia é controlado em última instância pelo sistema bancário e por um discurso que vaga entre duas abstrações consensuais, a moeda e a ideologia. O problema, aí, é outro: não podemos ser éticos sozinhos. Se o sistema não é ético, se premia e recupera o delito ético, é parcial, nefelibata e desonesto – como transferir nossa honestidade pessoal ao produto coletivo, que é o veículo? São questões que me assombram, quando um colega me consulta sobre problemas éticos. Os valores em que se assentam nossos códigos deontológicos – o julgamento pela razão, a crítica fundada no testemunho e na inferência lógica – estão sendo desafiados e agredidos pelo monopólio da irracionalidade e da religião do dinheiro.
Ética é superestrutura; a construção conceitual que suporta nossas escolhas está-se erodindo e, com ela, partes essenciais de uma cultura que data do pensamento grego reelaborado na Europa do Renascimento. Uma cultura que separa, por exemplo, o evento particular, único e privado – o estupro de uma criança – dos temas gerais pertinentes que a brutalidade do ato suscita, únicos que merecem debate público: a educação sexual, a sexualidade e as relações de poder nas microssociedades familiares, a condição de vida das famílias, a gestão da culpa e do desejo, o fanatismo e as armadilhas do liberalismo etc.
Como toda expressão social consulta algum nível de conveniência, a condição do jornalista como testemunho de seu tempo depende de situações objetivas. Alguns, dispondo de garantias particulares ou julgando dispor delas, expressam-se com maior liberdade: outros são hábeis ao compor o que efetivamente acham com o conjunto das coisas que lhes permitem dizer. A maioria, em dúvida, se cala. O problema é que o hábito de calar-se por conveniência termina sendo introjetado e o jornalista, como o militar ou o militante partidário, termina substituindo o próprio testemunho por algo compatível com o discurso conveniente.
- NILSON LAGE, jornalista, nascido em 1936, mestre em Comunicação, doutor em Linguística e Filologia. Foi professor adjunto da UFRJ e aposentou-se em 2006 como professor titular do Departamento de Jornalismo da UFSC, após 50 anos de atividade profissional.