Por Alberto Martins Cesário, professor e escritor
Quando lemos, não é só o mundo que se revela, somos nós que nos reescrevemos. Em meio ao barulho das telas e à pressa das redes, um professor reflete sobre o poder silencioso da leitura, essa atualização de alma que nenhum algoritmo é capaz de fazer.
Outro dia, no meio de um pensamento sobre leitura e identidade, um tema que, convenhamos, parece mais apropriado para uma roda de terapia coletiva do que para uma reflexão de domingo a tarde, pensando na segunda, sala de aula com as crianças famintas de recreio e imaginando o alecrim dourado perguntar com toda a sinceridade do mundo, professor, ler muda mesmo quem a gente é ou é só papo de professor?
Fiquei uns segundos pensando nisso, com o computador ligado, aula para preparar e a alma na ponta dos olhos. Pensei em responder com um tratado filosófico sobre a formação do sujeito leitor, as teorias de Bakhtin e as ideias de identidade narrativa. Mas para criança, isso não adiantaria, já estava vendo o menino bocejando. Então, em meus pensamentos veio a resposta, muda, só que a gente não percebe na hora.
Pronto, ali estava a síntese do nosso tempo, uma geração que entende o mundo em termos de “atualização de sistema”. E talvez não estejam errados. Ler é isso, uma atualização silenciosa do nosso software humano, só que, em vez de ocupar gigabytes, ocupa afetos.
A leitura instala versões novas de nós mesmos e às vezes, quando menos esperamos, um verso, um personagem ou uma ideia piscam no fundo da mente e dizem, “Você não é mais o mesmo.”
Mas há um equívoco bonito e perigoso no imaginário de quem fala sobre leitura, a ideia de que ler é “escapar da realidade”. Ah, se fosse, se a leitura fosse fuga, talvez ela servisse apenas para distrair, não para transformar, mas ler não é fugir é sim ficar mais intensamente, olhar o mundo com olhos emprestados, mas enxergar com os nossos.
Também há o mito do “bom leitor”, aquele ser mitológico que lê Dostoiévski no metrô, sem suar, e cita Clarice Lispector no meio de uma conversa sobre futebol.
Em sala de aula, esse mito vira pesadelo, o aluno que lê mangá não é leitor “de verdade”; o que prefere as legendas do TikTok é “superficial”; o que não lê o clássico inteiro, mas se emociona com uma frase, “não compreendeu o texto”.
Bobagem, somos todos leitores em construção, tropeçando nas entrelinhas. O que muda é o caminho que nos levou até elas, então chego a conclusão que ler não é uma habilidade, é uma identidade. E identidade, você sabe, não se forma com manuais, pelo contrário, forma-se com encontros, desencontros e, muitas vezes, com um professor que insiste em ler em voz alta mesmo quando metade da turma está navegando num mar de notificações.
É impossível falar sobre leitura e identidade sem encarar o elefante digital na sala, as redes sociais. Elas são, ao mesmo tempo, vilãs e cúmplices dessa história, porque, sejamos justos, nunca se leu tanto quanto hoje só que o que se lê mudou de formato e o problema é que os textos ficaram curtos, ligeiros, e as identidades também.
Outro dia um aluno enviou no grupo de whatsapp da sala um vídeo de 15 segundos e disse que era “literatura visual”, confesso que, por um instante, achei genial. Depois, percebi que o vídeo era um meme com a dublagem de uma música da Barbie, e ainda mandou uma legenda que dizia: Professor, isso também é leitura, né?
E eu, que ando cansado de ser o juiz do gosto alheio, respirei fundo e respondi: É uma leitura do mundo, sim, mas há leituras que nos expandem e outras que nos achatam, o desafio é saber quais estão te construindo e quais estão te usando, lógico que usei palavras que estão no vocabulário deste aluno, mas a mensagem era essa.
Porque é isso que o universo digital faz, nos usa para construir a sua própria narrativa e se o livro é espelho, o feed é vitrine, nos livros, a gente se reconhece e no feed, a gente se exibe.
Um livro pede tempo, silêncio e solidão, três coisas que a era digital decretou como obsoletas e nós, professores, tentamos disputar atenção com o brilho das telas, como quem tenta acender uma vela em meio a uma tempestade de LED.
Tem dias em que ser professor de leitura parece um exercício de fé, a gente fala, fala, fala e o eco que volta é um scroll infinito. Você lê com a turma um trecho de O Pequeno Príncipe, fala sobre amizade, sentido da vida, planeta B-612… e alguém levanta a mão para perguntar se o autor tem canal no YouTube.
É frustrante, a gente se dedica a formar leitores do mundo, mas o mundo anda lendo cada vez menos a si mesmo, e o que as políticas públicas fazem diante disso? Pouco, quase nada e ainda nos mandam para salas cheias de alunos e vazias de livros, como quem pede a um eletricista trabalhar sem desligar a energia. Não há formação continuada que nos ensine a competir com a lógica do “curtiu ou não curtiu?”, muito menos há plano de governo que entenda que formar leitores é formar cidadãos com autonomia de pensamento e, portanto, mais difíceis de manipular.
Talvez por isso a leitura assuste tanto quem governa, ler é um ato político e ensinar a ler é uma forma de resistência.
Mas há dias em que tudo compensa, dias em que uma criança te chama depois da aula e diz: Professor, li aquele livro que o senhor falou, e você, já preparado para ouvir que ela não entendeu nada, ouve, eu gostei de quando o personagem percebe que podia mudar o final, eu também quero mudar o meu.
Pronto, e o suficiente para seguir e terminar o bimestre, porque é nesses instantes que a leitura revela seu verdadeiro poder, o de dar às pessoas a coragem de reescreverem a própria história.
Há também os momentos silenciosos, aquele aluno que nunca participa, mas, de repente, pede o livro emprestado “só pra ver como é o começo”, ou a menina que rabisca no caderno frases de um conto que lemos, misturadas com as letras de sua banda favorita.
A leitura vai se infiltrando pelas frestas, disfarçada de curiosidade, de emoção, de tédio até e um dia, sem aviso, ela floresce.
Então quem somos, afinal, quando lemos?
Somos versões expandidas de nós mesmos, ler é se emprestar por algumas páginas a outra vida, ensaiar sentimentos que ainda não tivemos coragem de sentir e se descobrir no espelho de um personagem, mesmo que ele viva num tempo e lugar distantes.
A criança que lê não apenas decodifica letras ela experimenta identidades e brinca de ser outro aprendendo a ser ela.
E é aí que mora o milagre ao ler, cada um de nós se torna autor de si, o texto nos lê de volta e nos devolve mais inteiros.
Quando penso em tudo isso, lembro de uma aluna que, depois de ler um poema, me perguntou se o autor estava triste quando escreveu aquilo? respondi que talvez e ela concluiu: Então acho que ler é sentir o que o outro sentiu pra ver se cabe na gente.
Nunca ouvi definição mais bonita.
Costumo dizer que a leitura é como café passado na hora, exige paciência, temperatura certa e um pouco de silêncio. Mas, no fim, vale o aroma, ler é o nosso modo de conversar com o mundo e com nós mesmos.
Talvez seja isso que este tempo hiper conectado precise reaprender, valorizar mais as pausas, e a leitura é uma pausa cheia.
É o contrário do vazio ruidoso em que vivemos, e nós, professores, seguimos tentando entre memes e parágrafos, entre risadas e exaustão, seguimos acreditando que cada livro aberto é uma janela aberta para dentro, seguimos acreditando, mesmo quando parece inútil, que ensinar a ler é ensinar a existir.
Tudo porque, no fundo, a leitura não forma apenas leitores, forma pessoas e pessoas que leem não se contentam em viver o que está escrito, elas escrevem o que ainda não foi vivido.
No fim do domingo, fecho o computador e penso na minha turma, vendo no silencio dos meus pensamentos, alguns bocejando, outros cochichando, um ou outro ainda me ouvindo, mas eu sei, e talvez só os professores saibam, que é assim mesmo que a leitura começa, em silêncio, em desatenção, em quase nada, até o dia em que o texto acerta o coração de alguém e, quando isso acontece, o barulho do mundo inteiro se cala.
Talvez seja isso que ainda nos move a esperança de que, mesmo num tempo de vozes rápidas e dedos apressados, ainda exista espaço para uma palavra que demora, um sentido que fica e um leitor que nasce.
E então, volto à pergunta que me fiz no começo deste texto: Quem somos, afinal, quando lemos?
Talvez sejamos aquilo que o mundo anda esquecendo de ser, gente que sente, pensa e sonha… bem devagar.




