Entre as vogais, consoantes e as resistências diárias do professor brasileiro

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Toda vez que me pego refletindo sobre a alfabetização no Brasil, imagino uma cena que não sei se é mais trágica ou heroica: um professor no sertão, segurando uma cartolina com letras desenhadas a mão, sorrindo para 25 pares de olhos brilhantes que esperam, esperançosamente, descobrir o mundo através do “B com A: BA”. E não é só no sertão. É no centro de São Paulo, é na periferia de Manaus, é na escola rural do interior de Minas, é em cada canto desse Brasil imenso e diverso. A alfabetização, meus amigos, é o começo de tudo. Mas o caminho até ela é tortuoso, pedregoso e, muitas vezes, solitário para quem escolheu ser professor nos anos iniciais.

O desafio não é pequeno. Alfabetizar não é apenas ensinar a decodificar letras e formar palavras. É abrir uma porta para o pensamento, para a autonomia, para a existência. É um ato político, como dizem alguns pensadores sobre o assunto. E é justamente por isso que alfabetizar com qualidade não pode ser privilégio de poucos, mas direito de todos. Mas como garantir esse direito quando faltam condições materiais, apoio pedagógico, formação continuada e, acima de tudo, reconhecimento?

Vamos aos fatos. O Brasil ainda patina quando se trata de alfabetização plena. Dados do INEP mostram que, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental, uma porcentagem considerável de crianças não atingiu o que se espera em leitura e escrita. E isso é só a superfície do problema. Por trás dos números, estão as histórias de meninos e meninas que passam de ano sem dominar o básico, de escolas que improvisam salas multisseriadas por falta de professores, de docentes que fazem vaquinha para comprar materiais. Está também o retrato de um sistema que ainda insiste em cobrar alto desempenho sem oferecer as condições mínimas para que ele aconteça.

E o professor? Ah, o professor…

Esse sujeito obstinado, que acorda antes do sol, prepara atividades diferenciadas, inventa jogos com tampinhas, cria personagens com caixas de leite, transforma a sala de aula em floresta, mar ou espaço sideral para ensinar letras e sons. Que estuda de madrugada, que está nos grupos de WhatsApp trocando ideias, que empresta do próprio bolso para fazer acontecer. Que é psicólogo, enfermeiro, mãe, pai, conselheiro e, às vezes, até mágico.

Mas que também chora escondido no banheiro da escola quando a frustração bate. Quando percebe que aquele aluno precisa de algo que ele não tem como oferecer. Quando a burocracia o sufoca, quando a formação é insuficiente, quando a coordenação é ausente, quando a família não participa. Quando a sociedade o aponta, mas não o escuta.

E é nesse lugar de contradição que brota o ineditismo do professor alfabetizador. Porque, apesar de tudo, ele reinventa. Reinventa métodos, estratégias, abordagens. Alguns aderem à consciência fonológica, outros investem na leitura compartilhada, outros ainda se jogam nas metodologias ativas. Tem quem faça teatro com a turma, quem cante, quem recite cordel, quem leve a criança para ler debaixo da mangueira. Tudo isso sem garantias, sem certezas, mas com um compromisso radical com o aprendizado de cada aluno.

E é aqui que reside a verdadeira força da educação. Não está nos rankings, nem nas metas, muito menos nas falas de gabinete. Está no chão da escola. Naquela professora que percebe que o aluninho não consegue diferenciar o som do “F” e do “V” e, então, cria um jogo sensorial com barbante e vento. Está no professor que leva os alunos para a cozinha da escola e ensina a ler receitas. Está nos olhos da criança que, pela primeira vez, consegue ler uma frase inteira sozinha. Isso, meus amigos, é revolução.

Mas as revoluções também cansam. E muito.

Por isso, precisamos falar sobre valorização. E não estou falando apenas de salário (embora isso seja fundamental), mas de escuta, de formação continuada de verdade, de tempo para planejar, de condições dignas de trabalho, de respeito à autonomia docente. De entender que ninguém alfabetiza por conta de uma apostila ou de um aplicativo milagroso. Alfabetiza quem conhece a infância, quem estuda, quem observa, quem se compromete.

E o que ainda precisa ser feito?

Precisamos de políticas públicas que respeitem os contextos locais, que valorizem os saberes docentes, que fortaleçam a parceria com as famílias. Precisamos de diagnósticos reais, de intervenções pedagógicas fundamentadas, de redes de apoio entre professores. Precisamos de escuta, de acolhimento, de menos cobrança e mais colaboração.

E, principalmente, precisamos parar de esperar que a solução venha de cima.

Você, professor, é a solução. Já é. Com sua criatividade, com sua coragem, com sua resistência. Às vezes com raiva, com cansaço, com dúvidas. Mas com amor. Com muito amor. Que é o que sustenta essa engrenagem toda.

Então, meu caro colega de lida, não espere que te valorizem para saber o seu valor. Quem entende o poder de ensinar a ler, entende que mudar o mundo começa com a primeira palavra decifrada. Continue. Porque mesmo com pouco, você faz muito. E quando tiver mais, fará ainda melhor.

E se ainda duvidar da sua importância, lembre-se: você é aquele que ensina a ler o mundo. E quem ensina a ler o mundo, ensina a mudá-lo.

Até a próxima semana, com respeito, carinho e esperança…