Deslizar não ensina a pensar

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Há uns dias, entrei na sala do maternal 1 com a convicção de que, naquele dia, ensinaríamos sobre as cores primárias. Saí de lá com uma dissertação oral sobre o sentido da vida, dada por um aluno de 3 anos de idade, enquanto ele pintava um sol verde com olhos vermelhos. E com suas pinceladas e rabiscos coloriu o céu de laranja, com a autoridade de quem não teme o Google nem consulta o ChatGPT para confirmar se o pôr do sol permite essa ousadia estética.

E é assim, meus caros, que tenho aprendido que pensamento crítico não começa aos 18, quando se vota, muito menos aos 16, quando se flerta com ideologias no ensino médio. Ele começa muito antes, quando a criança descobre que pode perguntar “por quê?” setecentas vezes em menos de uma hora e nenhum adulto consegue responder todas.

A grande epifania desse semestre aconteceu durante o lanche, quando uma pequena aluna recusou a maçã e disse, convicta: “essa fruta é triste”. Quando perguntei por quê, ela respondeu: “porque ela não tem gosto de nada que eu gosto. Essa frase, proferida com os olhos fixos na metade da maçã, foi mais filosófica do que muito tweet viralizado com filtro de inteligência emocional.

Essa criança não sabe o que é Kant, mas questiona o mundo como se já tivesse lido todos os filósofos da humanidade. E o mais curioso é que essa faísca de pensamento livre e espontâneo começa ali, no chão de borracha da pré-escola, entre legos e giz de cera.

Mas vamos ao ponto que talvez doa mais, a exaustão mental e emocional de quem, como eu, tenta ensinar pensamento crítico enquanto compete com uma avalanche diária de vídeos de 15 segundos.

Outro dia, pedi a um grupo de alunos do 5º ano que refletisse sobre o que é liberdade. A aluna mais esperta da turma, respondeu: “professor, tem uma trend no TikTok sobre isso!” E então, antes que qualquer discussão pudesse começar, metade da turma já estava tentando lembrar a coreografia da tal trend, que, diga-se de passagem, envolvia uma música eletrônica e um papagaio de estimação.

Tente competir com um papagaio dançando enquanto você fala de culturas de outros povos. Tente.

A verdade é que nós, professores, temos sido jogados em um campo de batalha sem colete. A tecnologia entrou sem pedir licença, bagunçou os horários, alterou as prioridades e reorganizou o desejo dos nossos alunos. Enquanto a gente tenta ensinar a ler um parágrafo com atenção, eles deslizam o dedo como quem troca de mundo, um mundo onde tudo é rápido, raso e, acima de tudo, recompensador.

E veja bem, nem estou aqui demonizando a tecnologia. Seria como culpar o livro por ter afastado os alunos da oralidade. A questão não é a ferramenta, é o uso que se faz dela e mais grave, a falta de preparo que temos para lidar com isso.

Semana passada, em uma reunião de planejamento pedagógico uma das pautas era gêneros textuais e neste momento falamos também sobre engajamento digital. A proposta era fazer os professores recriarem conteúdos de forma interativas e curtas, de até 30 segundos, para explicar os assuntos das aulas. Um colega, daqueles que ainda usa colete com bolso de lapiseira olhou para a formadora e perguntou “e se eu quiser explicar um acontecimento histórico em mais de 30 segundos? Eu pensei, “com certeza os alunos deslizariam para a próxima tela.”

Desliza. Essa é a palavra que me assombra.

Vivemos uma época em que o conhecimento precisa se justificar com palminhas, emojis ou “curtidas”. Uma época em que se ensina com filtros de beleza e se aprende com legendas automáticas. E o que sobra para o educador é a sensação de estar gritando no vazio, como quem tenta explicar poesia em um estádio lotado durante um jogo de futebol.

Mas eis que, entre um grito e outro, surgem aqueles momentos que nos fazem continuar. São pequenos, quase insignificantes, mas são tudo.

Como o dia em que um aluno trouxe um livro de casa. Um livro, de verdade! Capa dura, cheiro de papel, palavras sem gifs. “Quero ler com você, professor, porque em casa ninguém tem tempo.” E ali junto com a turma ficamos sentados em uma roda, lendo juntos uma história sobre formigas rebeldes que se recusavam a fazer fila. Rimos tanto que a professora da outra sala veio perguntar se estava tudo bem.

Outro episódio, foi de um aluno do 5º ano, que levantou a mão e disse, “eu acho que as redes sociais deixam a gente burro, né?” Não soube se comemorava ou chorava. A verdade é que esse tipo de comentário, raro, precioso, é como achar um diamante na areia.

Esses momentos são a prova de que, mesmo quando tudo parece artificial, ainda pulsa vida no coração do ensino. E pensamento crítico, meus caros, é isso, a capacidade de enxergar além do óbvio, de questionar o que todo mundo aceita, de desconfiar até do algoritmo.

Aqui entra a parte que machuca, pensamento crítico não interessa a muita gente. Não dá voto fácil, não enche carrinho de e-commerce, não prende atenção por mais de 15 segundos. Um aluno que aprende a pensar por si mesmo é um cidadão que vai questionar o livro didático, o noticiário e até a própria escola.

Por isso, não é coincidência que não existam políticas públicas sérias voltadas à formação de professores para esse cenário digital. É muito mais conveniente nos manter exaustos, tentando dar conta de tudo, conteúdo, tecnologia, saúde emocional da turma e da nossa.

A maioria de nós aprendeu a ensinar num mundo analógico, com quadro-negro e dicionário físico. Agora, nos jogam num mundo digital onde tudo muda em tempo real e ainda esperam que a gente inove com criatividade. A inovação virou um mantra que mais parece um eufemismo para “se vira”.

Se há algo que aprendi com esses anos em sala, é que o pensamento crítico começa antes do que a maioria imagina. Ele nasce quando a criança é ouvida, quando suas perguntas não são ignoradas, quando ela tem liberdade para desenhar um céu laranja sem ser corrigida.

É ali, na educação infantil, que a semente é plantada. E se ela for bem regada com afeto, escuta, provocação e desafios teremos adultos que não se contentam com respostas prontas.

O problema é que essa semente cresce num solo rachado pela pressa, pela distração e pela falta de tempo.

Se você, leitor, ainda acredita que o futuro se constrói com pensamento crítico, então ouça com carinho o que os educadores têm a dizer. Não queremos apenas Wi-Fi e tablets. Queremos tempo, formação, escuta. Queremos espaço para ensinar sem precisar competir com o próximo meme viral. Queremos uma educação que forme cidadãos, não apenas consumidores.

E se você é pai, mãe, tio ou tia desligue o celular por meia hora e vá ler com seu filho ou apenas pergunte como foi o dia. O pensamento crítico não nasce na adolescência, nem numa prova do ENEM, ele nasce ali, na conversa simples, na pergunta despretensiosa, na escuta atenta.

E você, ainda consegue ficar mais de 30 segundos num assunto sem deslizar?

Pense nisso, ou melhor resista a não pensar. Porque, no fim das contas, educar é justamente isso um ato de resistência e como toda resistência, exige coragem.

Coragem que, felizmente, ainda encontro todo dia nos olhos curiosos das crianças e nas minhas próprias mãos, quando abro a porta da sala de aula e, apesar de tudo, decido continuar.