Arquitetura que abriga a fé

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Localizada na rua Alagoas, nº 2830, a fachada da nova Cúria Diocesana de Votuporanga. (foto Assessoria de Comunicação Diocese de Votuporanga)

 

Projetada pelo arquiteto sacro Robson Gabriel Guizelini, a nova Cúria Diocesana de Votuporanga foi concebida unindo funcionalidade, simbolismo e espiritualidade no mesmo prédio. Em entrevista, ele dá detalhes da obra e fala sobre os desafios da profissão

 

 

O arquiteto Robson Gabriel Guizelini durante obras na Catedral Cristo Rei, em Belo Horizonte, MG, projeto em construção. (foto arquivo pessoal)

 

Localizada na rua Alagoas, nº 2830, a fachada da nova Cúria Diocesana de Votuporanga. (foto Assessoria de Comunicação Diocese de Votuporanga)

@caroline_leidiane

Inaugurada na última quarta-feira (22), a nova Cúria Diocesana de Votuporanga se impõe como uma obra que ultrapassa a função administrativa e afirma-se como espaço simbólico da fé e da história.

O projeto é assinado por Robson Gabriel Guizelini, arquiteto e urbanista, especialista em Espaço Litúrgico: Arquitetura e Arte Sacra, que atua na área desde 2015. Concebido a partir do conceito de “maleabilidade espacial”, o edifício inspira-se na arquitetura monástica, nas tribos de Israel e na Jerusalém Celeste descrita no Apocalipse.

Em cada linha, forma e cor, há uma intenção de unir o terreno e o divino, traduzindo em concreto a caminhada de uma diocese jovem, mas em plena expansão. Nesta entrevista, Robson fala sobre o processo criativo, os significados que atravessam a obra e o papel da arquitetura sacra no mundo contemporâneo.

Diário de Votuporanga: O conceito de “maleabilidade espacial” aparece como eixo central do projeto. Como essa ideia se manifestou nas decisões de forma, estrutura e uso do espaço da nova Cúria de Votuporanga?

Robson Gabriel Guizelini: O conceito de “maleabilidade espacial” foi, de fato, o pilar de todo o nosso processo criativo, manifestando-se da seguinte forma: analisamos a própria natureza da Diocese de Votuporanga, uma comunidade ainda jovem, em plena fase de crescimento e evolução, tanto em termos pastorais quanto administrativos. A Cúria precisava ser, metaforicamente, um “espaço evolutivo para uma diocese em evolução”. Esse olhar para o futuro, somado à constatação de que as Cúrias, em sua essência, são organismos mutáveis em sua caminhada, guiou nossa proposta.
Para garantir essa adaptabilidade no futuro, fizemos escolhas construtivas estratégicas. A estrutura principal foi concebida com fundações e estrutura em concreto armado e elevações perimétricas em alvenaria. No entanto, o ponto-chave da maleabilidade reside nas divisões internas, que foram executadas predominantemente em drywall. Essa solução permite um redimensionamento espacial rápido, limpo e com custo-benefício favorável. Se a Diocese precisar de mais salas, uma ala maior ou a reconfiguração de setores em 5, 10 ou 20 anos, a mudança é facilmente viável sem comprometer a estrutura fundamental do edifício.

D.V.: A disposição das alas em torno da capela foi inspirada na organização das tribos de Israel. Como se deu esse diálogo entre o simbolismo bíblico e as necessidades práticas de uma instituição contemporânea?

Robson: Sempre acreditei que um espaço, qualquer que seja sua destinação, não pode ser concebido por si só; ele deve ser alicerçado em bases conceituais sólidas. Sendo assim, e considerando a fundamental importância desta obra para todas as nossas comunidades, tínhamos o dever de edificar um espaço cuja essência transcendesse suas funções práticas e administrativas.

O layout da Cúria, com sua planta distribuída em alas nascentes a partir da Capela, teve como inspiração a soma entre a arquitetura monástica e seus belos claustros com a organização das tribos de Israel ao redor do Tabernáculo no Antigo Testamento, que encontrará completude na Jerusalém Celeste do Novo Testamento. O Antigo à luz do Novo. Essa organização, além de teológica, resolveu grandes desafios funcionais. Ao centralizar a Capela, criamos uma maior conexão espacial com o centro espiritual da Cúria, além de uma solução extremamente eficiente para a distribuição dos diferentes setores, da otimização da circulação e da acessibilidade, e do aproveitamento da iluminação e ventilação natural.

Em resumo, toda essa inspiração não foi apenas estética: ela forneceu um princípio organizador, gerando um layout mais eficiente e simbolicamente coerente para as necessidades práticas da Diocese de Votuporanga.

D.V.: A capela, com planta octogonal, carrega forte valor simbólico ligado à renovação e à vida nova em Cristo. Qual foi o ponto de partida para essa escolha e que sentido você buscou transmitir por meio dessa geometria?

Robson: A forma octogonal e o número oito nos recordam a Ressurreição de Cristo (que ocorreu no “primeiro dia da semana”, o oitavo dia do ciclo semanal) e a Vida Nova em Cristo. Foi através da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo que nos foi dada a Salvação e a Vida Eterna. Cristo é o ponto primordial, a “pedra angular”, não

só da Capela e da Cúria, mas de toda a nossa existência.

Essa geometria, bem como o piso, o forro, os vitrais, a iconografia e cada peça litúrgica, também evidenciam o conceito da Capela como Tenda, que fora antes a do Sacrifício e agora é o próprio Cristo, a verdadeira tenda armada entre nós. O divino se atendeu no meio de nós, se fez humano conosco e nos deu a possibilidade da salvação.
É importante destacar também que esta Capela foi concebida a quatro mãos, junto com meu amigo e um dos maiores artistas sacros do Brasil, Romolo Picoli Ronchetti, cuja parceria se estende por toda a minha caminhada na Arquitetura Sacra. Além da Capela, é de autoria do Romolo o projeto dos vitrais e a execução dos painéis artísticos da Cúria.

D.V.: No pórtico vermelho, o Alfa e o Ômega recebem quem chega ao edifício. Como você equilibra a densidade simbólica da arquitetura sacra com a clareza estética e o acolhimento visual?

Robson: O pórtico vermelho envolvendo a porta com o Alfa e o Ômega é, de fato, um ponto focal simbólico. Ele evoca a passagem do Êxodo e a Páscoa israelita, a transição da antiga para a nova aliança, onde Cristo é o Princípio (Alfa) e o Fim (Ômega) de tudo. Essa densidade simbólica é fundamental, pois cada elemento da arquitetura sacra deve comunicar o sagrado e conduzir o espírito do homem até Deus.
Procuramos encontrar o equilíbrio entre essa densidade simbólica e a clareza estética e visual através da simplicidade das formas e da nobreza dos materiais. O espaço deve ser belo e acolhedor o suficiente para convidar à entrada e sugerir o transcendente, motivando o visitante a ir além do que é visto, a entrar no mistério para compreendê-lo e vivê-lo.

D.V.: As fachadas da Cúria unem referências monásticas, industriais e contemporâneas. De que forma essa mistura de estilos traduz a identidade da Diocese e o espírito do tempo em que vivemos?

Robson: Essa mistura de estilos não é um mero capricho estético, mas sim uma tradução intencional e profunda da identidade da Diocese e do espírito do tempo em que vivemos.

A referência monástica é sutil, mas fundamental, marcando a centralidade do transcendente no edifício. A Cúria é, antes de tudo, o coração administrativo e pastoral da Diocese, um lugar de oração e trabalho. O volume central e discreto da Capela, com a pequena cruz no topo, remete à estrutura do claustro monástico: um espaço de recolhimento no meio da agitação, que orienta todo o conjunto edificado para a contemplação e o serviço. O claustro, historicamente, é a espinha dorsal do mosteiro, unindo os espaços de trabalho, estudo e oração. Aqui, a Capela assume esse papel axial, lembrando que a missão da Diocese emana da fé e da oração.
O estilo industrial, com suas linhas práticas, objetivas e eficientes, foi escolhido para traduzir o pragmatismo funcional de uma Cúria. Ele reflete o nosso compromisso com a boa administração, a transparência e a simplicidade, evitando ostentação.
O toque contemporâneo comunica que a Diocese é “filha do seu tempo”. Atua como um elemento de liberdade, adaptabilidade e acolhimento. O jogo de volumes, formas, revestimentos e tonalidades confere à Cúria um caráter marcante e permite que o edifício dialogue com o presente.

O brasão da Diocese e a Cruz Cósmica (evidenciada no piso da Capela) são elementos visuais de primeira ordem que finalizam essa narrativa. A Cruz Cósmica, que evoca a imagem da “Jerusalém Celeste” — a cidade com diversas moradas — reforça a ideia de que a Cúria é um espaço de unidade e acolhimento, pronta para receber seus muitos filhos.

D.V.: Na sua experiência, o que diferencia a arquitetura sacra da arquitetura religiosa tradicional? E qual é o papel do arquiteto ao conceber um espaço destinado ao encontro entre o humano e o divino?

Robson: Embora os termos sejam frequentemente usados de forma parecida, existe uma distinção crucial em sua finalidade. A arquitetura sacra é aquela que está diretamente a serviço da liturgia, do culto divino e da celebração dos sacramentos. Pense nas igrejas, catedrais, capelas e basílicas — seus espaços são projetados para facilitar e envolver o fiel na experiência ritual do encontro com o sagrado, seguindo as diretrizes e a tradição da Igreja.

Já a arquitetura religiosa abrange todos os espaços ligados à fé e à devoção, mas que não são necessariamente o local principal do culto. A Cúria Diocesana, por exemplo, embora seja um edifício profundamente religioso, é um espaço de administração, encontro pastoral, formação e trabalho eclesial. Outros exemplos seriam oratórios particulares, centros comunitários e salas de catequese.

O papel do arquiteto sacro é conceber espaços que sejam verdadeiras “janelas para o mistério”. Não se trata apenas de erguer paredes bonitas e funcionais, mas de garantir que a arquitetura dialogue com a doutrina, a tradição e a espiritualidade — que permita o encontro entre o humano e o divino através dos sacramentos, da contemplação, da beleza e do amor.

D.V.: Em um projeto sacro, a funcionalidade e a transcendência parecem caminhar lado a lado. Como você trabalha esse equilíbrio entre a prática e o mistério?
Robson: Hoje refletimos muito sobre os espaços serem altamente funcionais; no entanto, os espaços sagrados não podem perder sua função primordial, que é a de transcender o espírito a Deus.

Nas igrejas, possuímos espaços que permitem uma profunda vivência do mistério, como o Batistério, o Presbitério, a Capela do Santíssimo e o Confessionário. Em contrapartida, no projeto da Cúria, cuja essência é governamental e funcional, buscamos transpor o transcendente para além de sua Capela, integrando-o intrinsecamente à sua estrutura, desde a concepção da planta até a elevação de suas fachadas.
D.V.: A arte sacra tem presença marcante na nova Cúria, especialmente nos vitrais e painéis iconográficos. Como foi pensada essa integração entre arte e arquitetura?
Robson: De fato, a arte sacra tem presença marcante na nova Cúria. Assim como nas igrejas, a arte deve nascer intrinsecamente ligada à arquitetura. Pensamos essa integração desde o princípio, pois arquitetura e arte precisam caminhar juntas para conceber um verdadeiro programa arquitetônico-iconográfico.

Para isso, a parceria com o talentoso artista sacro Romolo Picoli Ronchetti foi essencial e muito enriquecedora. Ele conseguiu traduzir em cores e formas toda a essência conceitual e teológica da arquitetura da Cúria. Por exemplo, na Capela, a grande inspiração é a promessa de Deus a Abraão. O mural principal foi realizado em dois planos: uma parte inferior e uma parte superior. Elas se integram entre si como céu e terra, passado e futuro, história e eternidade, liturgia terrestre e liturgia celeste. Ao mesmo tempo em que representa a memória da visita dos três peregrinos a Abraão, é também uma antecipação da imagem da comunhão final no seio da Trindade, na Jerusalém Celeste.

Complementando essa cena, os vitrais ao lado explodem em cores vibrantes, simbolizando a numerosa descendência prometida a Abraão, conectando o Antigo Testamento com a plenitude da fé.

Além disso, a arte se estende pelo edifício para guiar o visitante e demarcar simbolicamente as alas. Recebendo a todos, na entrada da Capela, está a Mãe de Deus com o Menino, como Sede da Sabedoria — está nessa posição pois nela se dá a porta de entrada do Verbo de Deus na História. E para “marcar” simbolicamente as alas, Romolo utilizou os quatro Seres Vivos, apresentados no Livro de Ezequiel e retomados no Apocalipse. São símbolos importantes da Antiguidade que representam as constelações que marcam os momentos mais importantes do ano: os solstícios e os equinócios — os ciclos da vida. Eles são vistos nos textos como bases do trono de Deus, indicando que Aquele sentado sobre eles é o Senhor da Vida, do Tempo e do Espaço. Além da simbologia adotada também aos Evangelistas: o Leão (Marcos), o Homem (Mateus), o Touro (Lucas) e a Águia (João). Essa escolha não só confere beleza, mas reitera a função da Cúria como um centro administrativo e pastoral que se baseia na Palavra e na missão evangelizadora.

D.V.: Criar um espaço sagrado em pleno século XXI traz desafios específicos. Quais tensões ou reflexões contemporâneas você sente atravessarem a arquitetura sacra hoje?

Robson: Acredito que, mais do que desafios, o século XXI nos impõe profundas reflexões sobre a arquitetura sacra. O nosso papel como arquitetos sacros é garantir que o edifício sagrado continue a ser um sinal visível e acolhedor do invisível.
Criar um espaço sagrado vai muito além de projetar um belo edifício: é ter cuidado e zelo com a comunidade local, considerar suas reais necessidades físicas e espirituais e ser responsável diante das capacidades econômicas. Um espaço sagrado digno não é sinal de luxo e excesso, e sim, de uma “nobre beleza”.

D.V.: Você acredita que a arquitetura pode evangelizar por si só e que o espaço, em sua forma, luz e silêncio, é capaz de conduzir o fiel a uma experiência de fé?
Robson: A arquitetura não pode evangelizar por si só, pois o encontro com o Mistério é uma graça divina. No entanto, é uma poderosa ferramenta de evangelização, ajudando a conduzir o fiel a uma experiência de fé.
A arte sacra é como uma “ponte”, conduzindo a Deus aqueles abertos ao Seu amor, oferecendo espaços dignos, belos e contemplativos. Nos termos de São João Paulo II, em sua “Carta aos Artistas, a Igreja tem uma profunda necessidade da arte e da arquitetura para “transpor para fórmulas significativas aquilo que, em si mesmo, é inefável”, ou seja, para dar forma ao Mistério.

D.V.:  Cite alguns projetos sacros que já realizou e de que forma cada um deles marcou sua carreira profissional.

Robson: Sinto-me imensamente grato a Deus pelo dom, pela vocação e pela graça de poder servi-Lo em cada projeto que me confiou. É um caminho que não percorri sozinho, contando sempre com a parceria de muitos, como o meu amigo e artista Romolo, que se faz presente e compartilha diversos trabalhos.

Ao longo desta última década, tive a honra de conceber, participar ou contribuir em diversos projetos sacros, espalhados por várias regiões do Brasil. Dentre eles, cultivo um carinho especial pelo meu primeiro projeto, em minha comunidade natal — a adequação da Matriz N. Sra. de Aparecida, em Monções (concluída) — e pelos projetos regionais, como a singela e histórica Capela N. Sra. das Dores, em Itaiúba-SP (adequação a ser iniciada), a Paróquia São Cristóvão (em construção) e a Capela do Santíssimo da Paróquia S. Bento (concluída), ambas em Votuporanga.

Poderia elencar vários outros, mas citarei por fim três projetos que também me marcaram: os projetos da Matriz N. Sra. do Bom Remédio, em Itaituba-PA (adequação a ser iniciada), o da Matriz N. Sra. do Bom Conselho, em Granito-PE (em desenvolvimento), e, diante de muita responsabilidade, mas com imensa honra e humildade, a contribuição no projeto litúrgico da Catedral Cristo Rei, em Belo Horizonte-MG (em construção), último projeto de um dos maiores arquitetos brasileiros, Oscar Niemeyer.

D.V.: Quais são as especializações necessárias para ser um arquiteto sacro? Você tem algum conselho para quem quer se profissionalizar nesse nicho?
Robson: Para ser um arquiteto sacro, a primeira especialização, claro, é a formação em Arquitetura e Urbanismo tradicional, que fornece a base técnica e projetual. No entanto, o diferencial está na pós-graduação e nos cursos de extensão focados em Arquitetura e Arte Sacra do Espaço Litúrgico.

Essas especializações são cruciais porque o arquiteto sacro precisa dominar uma série de conhecimentos que vão muito além da estética e da engenharia. Ele precisa ter sólidos conhecimentos de teologia, liturgia, história da arte e da arquitetura sacra, além das normas canônicas e documentos da Igreja.

Quanto ao conselho, exponho uma convicção: é preciso viver o que se projeta. Ninguém projeta o sagrado se não o vive. Portanto, é imprescindível cultivar uma vida espiritual e comunitária ativa e verdadeira. O arquiteto sacro deve ser um profundo conhecedor de Deus e da Igreja, pois o templo que ele constrói é a “casa de Deus com os homens”, um lugar feito para elevar a alma. É uma missão, mais do que uma profissão.

 

Este painel é uma pintura sacra que faz parte da iconografia da Cúria e se encontra na parede que antecede as portas da Capela. (foto Danilo Camargo)
O pórtico vermelho da entrada simboliza a passagem da antiga para a nova aliança, tendo Cristo, o Alfa e o Ômega, como porta da salvação. (foto Assessoria de Comunicação Diocese de Votuporanga)
A Capela, de planta octogonal, simboliza a vida nova em Cristo e tem o piso formado pelos ‘Rios da Vida’, que ligam o altar à assembleia. (foto Assessoria de Comunicação Diocese de Votuporanga)

 

Os polos litúrgicos: Altar, Ambão e Sédia, expressam unidade e simbolizam a passagem da pedra bruta à pedra polida, iluminada pela luz de Cristo. (foto Assessoria de Comunicação Diocese de Votuporanga)