Por Alberto Martins Cesário, professor e escritor
“Num tempo em que tudo é instantâneo, a infância ainda ensina que o que realmente transforma leva tempo e cuidado.”
Toda vez que ouço alguém dizer que “a infância é um território de esperança e transformação”, confesso que sinto uma pontada de desconfiança. Parece frase de congresso pedagógico com “coffee break” caprichado. Dessas que a gente repete sorrindo, com crachá pendurado no pescoço, sem saber muito bem o que quer dizer.
Mas basta voltar pra sala de aula, olhar pro rosto das crianças, para entender que há algo de verdadeiro ali, embora muito mais complexo do que o slogan faz parecer.
Sim, a infância é território. Mas não é aquele campo florido das propagandas de brinquedo educativo, está mais para um terreno cheio de buracos, de travessias, de caminhos mal sinalizados, um território de guerra e de paz, de encantos e desencantos, de miúdos heróis tentando decifrar o mundo enquanto o mundo insiste em decifrá-los antes da hora.
Transformação, por sua vez, é palavra bonita, mas trabalhosa, pois, todo mundo quer o bônus da mudança, mas poucos estão dispostos a lidar com o caos do processo e transformar dói. É sair do conhecido, é bagunçar certezas. E a infância, ah, essa infância querida, se transforma o tempo todo, para este professor é o laboratório da humanidade, o único lugar em que a gente ainda acredita, mesmo sem saber direito em quê.
Outro dia, uma aluna me perguntou se “Jesus tinha Wi-Fi”, e ainda disse que, se tivesse, talvez tivesse conseguido mais seguidores que o Neymar, eu ri, mas por dentro doeu. Não de indignação, mas de constatação, vivemos uma infância digital, as crianças de hoje são feitas de conexões elétricas, não de bolinhas de gude.
Elas não brincam mais de amarelinha, agora “pulam fases”, o recreio virou feed, e o brincar virou “scroll” (termo em inglês para rolar), nós, professores, tentamos desesperadamente disputar a atenção de quem vive com a mente plugada no TikTok.
Há dias em que sinto que estou concorrendo com o algoritmo e, sinceramente, estou perdendo. Enquanto explico o ciclo da água, o assunto da turma é o celular, um vídeo qualquer, uma dancinha, um joguinho, tudo arranca mais gargalhadas que toda a minha didática e o meme vence a metáfora, a tela vence o quadro e o Google, esse oráculo moderno, responde antes que o aluno pergunte. Veja se não é uma luta desigual, nós com giz e apagador; eles com wi-fi e atualização de software.
Mas, veja, não é culpa deles, a infância não é culpada, ela é só o espelho de um tempo que desaprendeu a esperar. Tudo é “pra já” e ensinar exige demora.
Ensinar é plantar o que só floresce depois, quando o aluno já virou outro, é ofício de quem lida com o invisível, com o ainda-não.
Dizem que a escola é o lugar da transformação, eu até concordo, mas não nesses moldes heroicos que andam vendendo por aí.
Não é transformação com fogos de artifício, é uma transformação silenciosa, quase imperceptível que acontece num olhar, numa frase que faz pensar, num erro que vira descoberta. Mas os discursos oficiais transformaram o verbo “transformar” em fetiche e querem que o professor seja mágico, influencer, curandeiro, psicólogo e youtuber e tudo ao mesmo tempo. Colocam a responsabilidade na escola de salvar o mundo, mas não garantem sequer que ela tenha papel sulfite.
Em tom poético querem que a infância floresça, mas podam os galhos antes do broto.
Outro dia, um gestor, empolgado, disse-me que a escola precisava formar crianças protagonistas, pensei, protagonista de quê? De um filme que ninguém escreveu? De um roteiro que muda conforme o edital do MEC?
A infância não quer ser protagonista, quer ser criança, precisa descobrir, experimentar, errar, e nós, adultos, andamos tão viciado em metas, resultados e planilhas que esquecemos que a esperança mora no erro bem vivido e não na performance bem avaliada.
Há dias em que volto pra casa com a sensação de que nada faz sentido, preparamos uma aula com amor, pesquisa, criamos atividades, e os alunos, dispersos, inquietos, parecem não ouvir nada e, ainda assim, há algo que me faz voltar no dia seguinte, talvez seja o olhar curioso de uma criança que, no meio do caos, levanta a mão e pergunta algo que ninguém esperava ou aquele aluno que escreve uma redação torta, mas cheia de alma. Acredito que esses lampejos que me lembram que o ensino é um ofício de fé e não falo de fé religiosa, falo daquela fé laica, teimosa, que acredita que vale a pena mesmo quando tudo parece perdido. Educar é isso, plantar em terra árida e confiar que, um dia, chove.
Mas, às vezes, dá vontade de gritar, porque há um silêncio incômodo entre o discurso da transformação e a realidade do chão da escola. Os manuais falam em “educação inovadora”, nós contamos quantos metros tem o rolo de papel higiênico pra saber se dá até o recreio.
Políticos prometem “valorização docente”, nós viramos malabaristas de boletins, planilhas, relatórios e corações cansados e ainda ganhamos uma carteirinha (CNDB) para provar que existimos, como se um crachá fosse capaz de pagar a conta de luz ou curar o cansaço de quem ensina.
E o pior, ninguém nos preparou pra lidar com a infância conectada, não há formação continuada que dê conta de um aluno que aprende com memes e desaprende com provas.
A tecnologia avança, mas as políticas públicas andam a passo de tartaruga sonolenta, querem que falemos sobre esperança e transformação, mas não nos dão tempo pra respirar, nem escuta para reinventar.
Mesmo assim, a infância resiste e isso acontece quando uma criança desenha no caderno um mundo que ainda não existe ou compartilha o lanche com o colega, quando se você lê uma história e o aluno se emociona ou quando ele pergunta por que o céu muda de cor ou descobre que as palavras têm som e alma.
É aí que mora a tal esperança, não na frase de efeito do folder institucional, mas nestes gestos miúdos, quase invisível, que lembra que o humano ainda pulsa.
A infância é território de esperança porque, nela, a transformação é natural, inevitável, a criança não precisa de workshop pra mudar, ela muda o tempo todo. E nós, os adultos, esquecemos como se muda e, talvez, o nosso maior papel como professores seja reaprender com eles a arte de se transformar, não para se adaptar ao mercado, mas para permanecer vivo.
Eu me lembro, em um dia de aula, uma aluna do 5º ano, que não conseguia ler em voz alta sem chorar. Durante meses, evitava qualquer atividade que envolvesse leitura, um dia, sem que ninguém pedisse, levantou a mão e disse que queria tentar e leu uma frase, depois outra, gaguejou, errou, mas foi até o fim.
Quando terminou, a turma bateu palmas e eu, por dentro, chorei junto, não por pena, mas por gratidão, porque naquele instante, a escola cumpriu o que prometia, foi território de esperança e transformação. Não nas planilhas, mas na alma.
Essas são as vitórias que não cabem no Ideb, ninguém consegue medir a esperança, mas ela está ali, escondida entre uma folha amassada e uma descoberta sincera.
E nós, continuamos, entre uma conversa e outra, daquelas de sala dos professores, entre um gole de café frio, a gente ri das próprias situações que provocamos.
Hoje um aluno me chamou de ‘IA humana’, contou uma colega.
“Por quê?”, perguntei.
“Porque disse que eu respondo igual o ChatGPT, só que mais devagar.” Rimos, claro, mas, no fundo, doeu um pouquinho. A comparação revela mais do que parece, vivemos num tempo em que pensar virou sinônimo de lentidão e ensinar, um ato de resistência quase poético.
Mas ainda há beleza na lousa manchada, no caderno rabiscado, no aluno que erra com entusiasmo. Até no caos da aula de artes, no barulho do recreio, na pergunta inesperada, se repararmos bem, há algo a ser apreciado.
E é essa beleza que me faz seguir, porque ensinar para mim é, no fundo, acreditar que o futuro ainda tem salvação, mesmo que o presente insista em nos dizer o contrário.
Entre o giz e o sonho, quando penso na infância como território de esperança e transformação, lembro da minha mãe, professora da educação infantil por mais de 25 anos, dona Edith, hoje aposentada. Ela dizia que “a criança é a parte das pessoas que ainda acreditam em milagres”.
Na primeira vez que ouvi isso, achei exagero, mas hoje, entendo, o milagre é continuar acreditando, mesmo depois de crescer.
Talvez seja isso que a escola ainda nos ensina, mesmo a nós, adultos cansados que precisamos acreditar outra vez que o riso ainda cura, que a palavra ainda toca, que o olhar ainda muda o rumo de alguém. Crer que, por mais digitais que sejam os tempos, nada substitui o calor humano de uma boa conversa, o encantamento de uma história, o gesto de um professor que mantem a fé.
No fim das contas, talvez o verdadeiro território de transformação não seja a infância em si, mas o espaço que ela abre dentro de nós, esse pedaço de chão interno onde ainda cabe o sonho, o espanto, a vontade de recomeçar.
E é por isso que, apesar de tudo, sigo, com meu giz, minha fé e minha teimosia. Porque, entre memes e milagres, ainda prefiro acreditar que o futuro começa todo dia — dentro de uma sala de aula. E você?
Quando foi a última vez que acreditou, de verdade, que ainda há esperança?




