A Efêmera Academia Votuporanguense de Letras  (2ª Parte)

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JK a partir de 1956 inaugurou um governo que acordou o “gigante adormecido em berço esplêndido”

Por Antoninho Rapassi

Antes de continuar a abordagem do tema Academia de Letras, preciso registrar um lamento que é a constatação deste tempo de Coronavírus que veio para acabar, também, com um procedimento secular, saudável e satisfatório que era o abraço. O abraço comigo era tal qual um cachecol para aquecer a amizade e demonstrar o prazer do encontro. O meu abraço se completava com tapas amigáveis nas costas, e era um diapasão: quanto mais estalado o lance da mão espalmada contra as costelas do abraçado, maior a satisfação do encontro e com direito à cessão de beijos, de acordo com as conveniências. Tudo por amor! Sinceridade absoluta! Agora o cumprimento esfriou, distanciou-se para se evitar o contágio, preservando a saúde. Neste momento os braços se estendem, fecham-se as mãos que se chocam no ar, dando a aparência de um murro, como se fossem dois carneiros colidindo suas cabeças. E assim caminha a Humanidade…que se viu diante da pedra no caminho, de Drummond. E, com o COVID 19, o tropeço é abissal.

Voltemos ao ano de 1961. Quanta coisa mudou neste mundo e assistimos de camarote! O machismo, por exemplo, era assumido com a maior limpidez de caráter. É o caso de ler a transcrição do que está registrado na Primeira Ata lavrada no dia 19 de Junho de 1961, pelo secretário “ad-hoc” Ernomar Octaviano: “Após o senhor Presidente Azor Silveira Leite consultar o plenário quanto à possibilidade de mulheres integrarem a Academia Votuporanguense de Letras, foi opinião quase geral, porém não definitiva, que não.” E o assunto não mais foi mencionado nas outras dez reuniões que se realizaram neste autêntico Clube do Bolinha.

Nesta época, em Votuporanga destacava-se o nome da Professora Clacy Zan. Sinto não ter informações acerca das suas atividades culturais para mencioná-las aqui. Porém, posso garantir que havia unanimidade nos círculos sociais “entre as pessoas gradas” da nossa cidade, quanto ao alto conceito e respeito que a ela dedicavam. E ela certamente há de ter compreendido, culta como era, como os homens da sua terra precisavam crescer e ampliar seus horizontes. Pelo muito pouco contato que tive, posso assegurar que neste episódio prevaleceu sua inteligência desenvolta. Clacy Zan, filha de imigrante vêneto era dotada de uma delicadeza insolente e eu senti seu temperamento de ironista irredutível, o que me fez manter estratégica distância. Ela era muito talento para mim, eu um iletrado e casto em humanidades. Enfim, um jovem ginasiano com fortes tendências acadêmicas, porém ignorante por conta própria.

No dia 25 de Agosto de 1961, “levou-se a efeito mais uma reunião ordinária, a quarta, para tratar de assuntos referentes à fundação da Academia Votuporanguense de Letras.” É nesta reunião que o acadêmico “Ernomar Octaviano opinou fosse feito um convite ao Frei Benjamim Maria de Piracicaba, para que o referido pároco pudesse integrar a Academia, já que é uma das mais vivas expressões literárias do Município”. Concordando com a indicação deste nome, o presidente Azor Silveira Leite autorizou que cada um dos membros tem o direito de convidar outro elemento (sic). Esta decisão objetivava a composição final dos membros efetivos.

No dia 23 de Outubro de 1961, realizou-se a oitava reunião ordinária da Academia. Houve protocolares votações e outras medidas regimentais, sob a presidência de Azor Silveira Leite. Chegou à vez de se realizar a votação para a escolha dos novos acadêmicos, por indicação direta de acadêmico, membro fundador. Anísio Garcia Martin indicou o meu nome que, juntamente com os demais nomes apresentados, foi também aceito por unanimidade.

Anísio Garcia Martin fazia parte de destacada família votuporanguense, oriunda da Espanha. Aplicado aos estudos jurídicos e sociais, Anísio era fervoroso nacionalista. E este foi o viés que nos aproximou para sempre. Aliás, mais que nacionalista, Anísio Garcia Martin era filiado ao Partido de Representação Popular (PRP), sendo Plínio Salgado o seu líder inconteste. Este movimento político brasileiro tinha acentuada característica de direita e seus adeptos eram conhecidos como integralistas ou “camisas verdes”. A oposição também os carimbou com a alcunha de “galinhas verdes”. O auge deste partido coincidiu quando Hitler e Mussolini eram chefes de Estado, mas nesta história não vou entrar. No entanto devo fazer o registro da trilogia “Deus, Pátria e Família”, pela qual os partidários se batiam e, como se batiam. Com Plínio Salgado a inspirar o meu amigo e eu com Juscelino Kubitschek por “alter ego”, nos servíamos das noites calmas e silenciosas de Votuporanga, disputando qual de nós dois lustrava mais as imagens dos nossos icônicos ídolos. Nesta época da minha vida (1958 a 1962) fui presidente dos 3 Centros estudantis das escolas por onde passei. As oportunidades chegaram a mim nas bandejas: JK a partir de 1956 inaugurou um governo que acordou o “gigante adormecido em berço esplêndido”. Desbravou o Planalto Central e lá instalou 44.000 candangos para erguer Brasília e mostrar ao mundo a capacidade criadora do povo brasileiro. E eu fazia vários tipos de homenagens ao Presidente JK, tendo em todas as homenagens os discursos candentes do também jovem Anísio Garcia Martin. Deve ter sido pelas minhas hiperbólicas palavras, sempre pronunciadas nos momentos festivos, que explicam a indicação para ocupar uma cadeira na Academia Votuporanguense de Letras.

Confesso que fiquei encabulado! Tentei opor uma resistência (muito fraca, por sinal). Além do Anísio, o meu professor de português, Ernomar Octaviano me convenceu a aceitar a honraria. E para mim, até hoje esta indicação funciona como estímulo permanente no meu tratamento caricioso com esta “última flor do Lácio, inculta e bela”, como nos descreveu o poeta parnasiano Olavo Bilac.

Bem, e para terminar, devo contar o que aconteceu naquele fim de tarde de uma sexta-feira igual às outras sextas-feiras do ano todo, o que me leva a taxá-la de papel carbono, pois uma era a repetição da outra. Não, “de repente e não mais que de repente”(obrigado, Vinícius de Moraes), surge esbaforido, no corredor de minha casa e mais precisamente na janela do meu quarto, o presidente Azor Silveira Leite para transformar aquele dia, que passou a ser “Aquela Sexta-Feira da minha vida”. Explicou-me por quais motivos ele não poderia ir a São Paulo nesta sexta-feira e, por consequência deixaria de comparecer ao encontro, já agendado, para acontecer às 10:00 horas do dia seguinte, sábado, na residência de Aristêo Seixas, presidente da Academia Paulista de Letras. Como sempre foi do meu hábito, nem pestanejei, prontificando-me a representa-lo na reunião na capital, absolutamente convencido do apoio incondicional dos meus pais. Aliviado e agradecido, o presidente Azor entregou-me um volume contendo os Diplomas para serem também assinados pelo nonagenário presidente da congênere paulistana, além da carta em que me apresentava e explicava o óbvio.

O trem da EFA, naquela sexta-feira partiu de Votuporanga às 23:00 horas e eu, enquanto as pálpebras permitiram fui lendo um livro maçante, porém aconselhável para momentos desconfortáveis como aquele. O sono vencia a leitura desinteressada, de tal modo que Araraquara logo chegou para fazer a baldeação. Dentro do elegante trem da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, veloz e com seus funcionários uniformizados como se ingleses fossem, curti ao máximo o conforto oferecido. Pouco depois das sete horas, deixei a Estação da Luz e andei com a minha incontida alegria pelas amplas calçadas da Avenida Ipiranga. Tudo era festa e eu me sentindo importante, pois ia ser recebido pelo presidente da Academia Paulista de Letras, em sua residência na Rua Teodoro Sampaio, no Bairro de Pinheiros. Não era pouca coisa, não! À hora marcada, apertei a campainha e desta vez não corri…Eu estava diante de um vetusto casarão, ilhado por densa vegetação. O portão de ferro foi aberto por um funcionário, caminhei e subi um lance de escada até chegar à entrada principal, onde o próprio Acadêmico Aristêo Seixas me recebeu com amabilidade, conduzindo-me à biblioteca. Enquanto ele pacientemente assinava os Diplomas, meus olhos corriam pelas estantes bem organizadas, ostentando brochuras com gravações a ouro e pequenas obras de arte azinhavradas, espalhadas sobre mesas encostadas aos janelões, cujas cortinas filtravam os raios solares que teimavam em irromper naquele paraíso de leituras e recolhimento.

  • Continua na próxima semana.