Scroll, clique, reaja: curtidas, cliques e silencio.

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Entre cliques, curtidas e distrações, cresce uma geração que desliza o dedo pela tela, mas tem cada vez mais dificuldade de percorrer os próprios pensamentos.

Há alguns dias, no meio de uma aula sobre leitura de crônicas, um aluno do quinto ano levantou a mão, com um sorriso meio escondido na ironia da indagação, e perguntou se eu estava no TikTok?

Respondi que não, e o olhar dele foi de sincera piedade, um misto de quem acaba de descobrir que o professor ainda usa DVD e paga boletos no caixa eletrônico.

Mas o senhor devia, viu? Disse ele, e ainda complementou, lá tem um cara que explica português dançando!

E ali estava, diante de mim, a metáfora perfeita do nosso tempo, um garoto de dez anos achando que aprender só vale a pena se vier com coreografia.

Muito se fala sobre o “impacto das redes sociais” no pensamento infantil, mas a maior parte das conversas parece mais uma tempestade de julgamentos mal dirigidos. Uns culpam as telas por tudo, desde a falta de concentração ao sumiço da imaginação, outros, os mais entusiasmados, dizem que as redes “libertaram” as crianças, tornando-as criativas, comunicativas e conectadas.

A verdade, como quase sempre, está no meio do feed.

Não é o celular o vilão, nem o aplicativo o messias, o problema e talvez também a oportunidade, mora no modo como o mundo adulto terceirizou o cuidado com o tempo, a atenção e a formação do pensamento.

As redes sociais não sequestraram a infância, nós é que, cansados, distraídos e apressados, entregamos a senha.

Antigamente, o tédio era o berço da imaginação, hoje, é tratado como defeito de fábrica, pois, se a criança fica cinco minutos sem estímulo, alguém corre a colocar um vídeo “educativo” ou um joguinho “interativo” como se o silêncio fosse perigoso e a pausa, uma ameaça à produtividade infantil.

Mas é justamente nesse intervalo entre o nada e o tudo que nascem as ideias, é no ócio que o pensamento se alonga, se espreguiça, se inventa. É ali que o cérebro aprende a conversar consigo mesmo e a fazer perguntas que não cabem em stories de quinze segundos.

Quando o pensamento infantil é moldado por uma sucessão infinita de “scrolls” e “likes”, algo se altera profundamente, a criança passa a medir o valor do que sente pela reação dos outros, e a pergunta deixa de ser “o que eu penso?” para virar “quantos corações isso rende?”.

E, sem perceber, vai se formando uma geração treinada para reagir, mas não para refletir.

Em sala de aula, o impacto aparece de maneiras sutis, os alunos querem respostas imediatas e desconfiam de tudo que exige tempo, ler um texto longo então, é quase uma tortura e se for escrever uma redação sem copiar do Google, um ato de heroísmo.
E aí surge aquela pergunta que ouvimos sempre: Professor, é pra copiar? E no calor da emoção você responde: não, é pra pensar. E o silêncio que se segue é o mesmo que antecede os desastres naturais.

O professor, por sua vez, vive um duelo desleal tendo que ficar competindo com o brilho das telas, com os vídeos de dois minutos e com influenciadores que transformam qualquer assunto em espetáculo.

Enquanto falamos sobre a importância de organizar ideias em parágrafos, o algoritmo entrega um resumo colorido, cheio de memes, em formato de tutorial.

O que antes era uma sala de aula virou, muitas vezes, um campo de resistência da palavra contra o ruído, do tempo humano contra o tempo do algoritmo e do olhar que escuta contra o olhar que desliza.

Costumo brincar que o professor contemporâneo é uma mistura de Dom Quixote com youtuber frustrado. Lutamos contra moinhos digitais, sonhando que um dia o ensino voltará a ter a textura das conversas lentas, das descobertas partilhadas, da curiosidade que nasce sem pressa.
Mas, por enquanto, seguimos improvisando tentando ensinar análise sintática em meio a notificações, vídeos de gatinhos e dancinhas didáticas.

O mais curioso é que ninguém nos preparou para isso, políticas públicas seguem presas no século XX, discutindo lousas digitais enquanto os alunos já moram na nuvem, não há formação continuada que ensine um professor a disputar atenção com o TikTok, não há projeto pedagógico que compreenda o que é educar uma criança que pensa em formato de feed.

Mesmo assim, algo em nós insiste. Há dias em que a aula parece um monólogo para as paredes e ainda assim, no meio do cansaço, surge um lampejo.

Aquele aluno que chega dizendo: professor, ontem eu li aquele texto que o senhor indicou, ou uma menina que, depois de semanas em silêncio, escreve um parágrafo tão bonito que o mundo inteiro parece parar para ouvir. São esses instantes valem mais do que qualquer curtida, são os “likes” que não aparecem na tela, mas se imprimem na alma.

E é nesses momentos que a esperança resiste, tímida, mas teimosa.

As redes sociais não roubaram o pensamento infantil, elas apenas o colocaram diante de um espelho multiplicado. Portanto cabe a nós, pais, professores, sociedade ajudar a criança a se reconhecer em meio a tantos reflexos, ensinando que nem tudo o que brilha é verdade.
Que pensar exige tempo e que o saber não cabe num post de 280 caracteres.

Educar, hoje, é quase um ato de rebeldia, gritar “espere um pouco” e devolva à infância o direito de se demorar. Criar espaços de lentidão num mundo que quer correr o tempo todo.

Outro dia, durante uma roda de conversa, perguntei aos meus alunos o que fariam se ficassem um dia inteiro sem internet.
Silêncio até que um deles arriscou: Eu… acho que ia dormir, o outro disse: eu ia desenhar. E o menor de todos, com os olhos brilhando de susto e descoberta, respondeu: Eu ia conversar com a minha mãe.

Ali, percebi que o impacto das redes sociais não está nas telas, mas nas ausências que elas disfarçam.
No tempo que se perde, nas conversas que se encurtam, nas perguntas que deixamos de fazer porque alguém já respondeu antes da gente.

Talvez a educação do futuro não precise ser contra as redes, mas a favor do pensamento. E talvez ensinar, hoje, seja isso, reaprender a cuidar do que não cabe no feed.

Afinal, de que adianta uma infância conectada, se ela já não sabe se conectar consigo mesma?