O tempo que a pressa não entende

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Por Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Há dias em que a sala de aula parece um ringue, e eu, o árbitro cansado de um campeonato mundial de “quem fala mais alto”, resolvi falar de um tema que vem me incomodando a anos, a falta de “respeito às opiniões diferentes”.

Em uma manhã de muito calor eu começo a aula cheio de esperança, acreditando que, dessa vez, vai dar certo, e dez minutos depois, um aluno já grita “professor, mas isso é errado!”, outro rebate “tá certo, sim!”, e lá vou eu, apitando, pedindo calma, lembrando que “respeito” não é concordar, é ouvir.

Eles me olham com cara de quem acabou de ouvir um tutorial de japonês avançado, final, ensinar o desacordo respeitoso é quase como ensinar o silêncio a um tamborim, exige mais poesia que técnica.

“Professor, o senhor viu o que a fulana postou?”, pergunta um aluno, indignado, enquanto eu ainda escrevo no quadro. Antes que eu pergunte “quem é fulana?”, ele já está me dando os detalhes com a agilidade de um repórter de guerra. Estamos trabalhando com a geração do “digitou, respondeu”

Naquela narrativa, um debate acalorado sobre… nada, ou quase isso, um vídeo curto, um comentário atravessado, uma enxurrada de reações emojificadas: raiva, gargalhada, coração partido.

É o tribunal digital da era do impulso onde todo mundo é juiz, ninguém jurado.

Aqui estamos diante de dois verbos, ou duas ações se acharem melhor, o verbo reagir que virou verbo de sobrevivência e o pensar, um verbo quase em extinção.

O problema é que, entre o “curtir” e o “cancelar”, a paciência evaporou. A pausa necessária para o pensamento virou um luxo, e quem tenta refletir parece estar sempre “fora do ar”.
Não é que os alunos não queiram pensar. É que o mundo ao redor não dá tempo, eu já até disse isso, pensar virou um gesto de resistência, quase revolucionário.

Na escola, o “desacordo respeitoso” virou moda nos murais, mas continua um ilustre desconhecido na prática. Eu digo que há dois tipos de desacordo, que educa e o que destrói.

Muitos acham que não concordar com uma ideia ou opinião significa “falar bonito quando se discorda”, outros confundem com “ficar calado para evitar problema”.

Mas o verdadeiro desacordo respeitoso é arte rara, é discordar sem anular o outro. É olhar para o diferente e não enxergar ameaça, mas possibilidade.

No quinto ano, onde as verdades ainda são redondas e coloridas como bolinhas de gude, é difícil compreender que duas opiniões podem coexistir sem precisar se destruir.

E como culpar as crianças, se os adultos vivem em guerra por qualquer vírgula?

A televisão ensina a gritar, a internet ensina a responder, mas quem está ensinando a escutar?

A escola tenta, muitas vezes tropeça, às vezes acerta, mas entre nós, professores, há um segredo que poucos entendem, que educar para o desacordo não é sobre ensinar regras de convivência é sobre educar para o tempo.

O tempo de pensar antes de falar, tempo de respirar antes de reagir e o tempo de perguntar “por que penso assim?” antes de acusar o outro de estar errado.

Enquanto tento discutir falar sobre os mistérios de um conto, um aluno está discutindo com outro por sabe lá o que.

Quantos autores de clássicos literários perdem, sem chances, para um vídeo de trinta segundos com uma pessoa enchendo uma piscina com gominha para chamar a atenção. A concorrência é desleal com o mundo online e lá está o professor eu, você, nós tentando disputar atenção com a fábrica de dopamina mais eficiente da história.

Há dias em que parece impossível.

Você prepara uma aula linda sobre interpretação de texto, fala sobre metáforas, símbolos, ironias e o aluno te pergunta se pode fazer um resumo “com ajuda da inteligência artificial”. Na verdade o que ele quer dizer, é, “tem como pular a parte de pensar?”.

E a gente suspira, sentindo que carrega uma biblioteca inteira nas costas, enquanto o mundo lá fora só quer os trechos destacados.

Ser professor, hoje, é estar em constante competição com o scroll infinito, como plantar sementes de pensamento profundo em um terreno que só aceita sementes instantâneas.

E, mesmo assim, seguimos, porque há dias em que uma criança levanta a mão e diz:
— Professor, eu fiquei pensando sobre o que o senhor falou…
E só isso já paga o mês.

Houve um tempo em que achávamos que o desafio do professor era “manter a disciplina”. Hoje, o desafio é manter a esperança, estamos entre a exaustão e o milagre.

A esperança de que vale a pena insistir em um diálogo, mesmo quando ninguém parece escutar, saber que entre uma notificação e outra, alguém ainda vai se encantar por uma frase, uma ideia, uma pergunta que não cabe em 15 segundos.

E é nessa corda bamba entre o desânimo e o milagre que vivemos, um dia de cada vez, onde há dias que você sai da escola achando que nada faz sentido e outros, um aluno te entrega um bilhete dizendo que gostou daquela conversa sobre pensar antes de responder.

É nessas brechas que a educação se reinventa e não nas grandes reformas, nem nos slogans de campanha, mas nesses pequenos gestos que ninguém divulga.

Enquanto isso, lá no monte olimpo, os discursos sobre “educação digital” continuam cheios de promessas vazias, são as políticas públicas com seu silêncio ensurdecedor.

Fala-se em tecnologia, inovação, inteligência artificial, mas pouco, digo até que quase nada, sobre formar professores para lidar com esse novo mundo.

É como dar um barco a alguém e esquecer de ensinar a remar.

Jogam o professor no mar da era digital e esperam que ele saiba nadar com elegância, mesmo que nunca tenha tido uma boia, e querem resultados de país nórdico com salários tropicais, esperam alunos críticos, mas não investem em quem ensina a criticar exigem mais silêncio nas redes, mas ignoram que o ruído vem da falta de escuta real.

E nós seguimos, tentando improvisar a travessia com pedaços de papel, afeto e teimosia.

Outro dia, dei uma aula falando sobre opinião, e fiz a proposta para que cada aluno defendesse uma ideia com respeito sem gritar, sem rir do outro, sem usar “mas é óbvio que você está errado”.

Silêncio. Uns riram. Outros acharam que era “bobagem de professor”, mas, ao final, um deles disse:

— Professor, eu achei que era impossível conversar sem brigar. Hoje eu vi que dá. As pequenas vitórias que salvam o dia, ali, no meio do caos, nasceram uma fagulha de lucidez e esses momentos são pequenos, mas são como fósforos em noites de apagão, não iluminam o mundo inteiro, mas lembram a gente que ainda existe fogo.

Acredito que é até por isso que a gente volta no dia seguinte, mesmo cansado, frustrado, duvidando, porque o professor é esse ser meio teimoso, que acredita que uma conversa pode mudar um destino.

Se você, leitor, é professor, talvez esteja lendo isso com a mesma mistura de cansaço e ternura que eu senti ao escrever, se é pai, talvez venha a sua memória seu filho respondendo “já sei!” antes mesmo de ouvir a explicação e se for aluno, talvez não perceba, mas cada vez que um professor insiste em te fazer pensar, está te oferecendo o que o mundo mais precisa tempo.

Tempo para refletir, para discordar sem destruir, para descobrir que a pressa de reagir rouba de nós o prazer de compreender.

Afinal, educar é isso, atrasar o mundo só o suficiente para que o pensamento possa passar.

Neste mês em que se celebra o Dia do Professor, entre flores de papel e mensagens prontas, eu só peço uma coisa, não nos deem parabéns. Precisamos de tempo para pensar, para respirar, para aprender também. Tempo para errar e recomeçar sem culpa, um momento para conversar, porque ensinar, no fundo, é um diálogo infinito entre gerações.

E quando o mundo parecer rápido demais, lembre-se que a educação nunca foi sobre velocidade, mas sobre profundidade.

Enquanto houver um professor que ainda acredita que pensar vale mais do que reagir, a esperança seguirá viva mesmo que cambaleante, dentro de alguma sala de aula por aí.

Porque, no fim, o que seria do mundo sem quem ensina o mundo a pensar?

E você, leitor, tem conseguido pensar ou só tem reagido?