Por um professor cansado, mas ainda esperançoso
Alberto Martins Cesário, professor e escritor
Se um dia você acordar e pensar: “Acho que quero ser professor”, volte a dormir. Pode ser febre, delírio ou um pesadelo.
Se acordar de novo com essa mesma ideia, bom, aí talvez você tenha nascido com esse dom esquisito de acreditar que a palavra pode transformar o mundo. E, nesse caso, seja bem-vindo ao clube daqueles que insistem em educar mesmo diante da tempestade ou, como prefiro dizer, diante do Wi-Fi instável e da vontade ainda mais instável de aprender.
Tenho um pouco mais de dezesseis anos de sala de aula. O que quer dizer que, se minha carreira fosse uma pessoa, já poderia estar votando, dirigindo, se endividando no cartão e talvez até largando a faculdade. E, com essas quase duas décadas, aprendi que ensinar nunca foi só sobre passar conteúdo. É, na verdade, um duelo diário entre dois deuses antigos: a fúria e a curiosidade.
A fúria aparece quando você está diante dos alunos, num calor de quarenta graus, com o ventilador da escola girando no modo “turbina de avião em pane”, tentando explicar o conceito de equivalência de frações e um aluno levanta a mão, sério, sincero, com o corpo presente na aula, mas a mente vai saber onde, e pergunta: “Professor, mas isso aí tem no TikTok?”
Ah, a fúria. Ela vem quente, vem do estômago, vem da alma que estudou anos, fez mestrado, leu constituição, LDB, Marx, Foucault, BNCC, leu até o que não queria. Ela vem e grita dentro da cabeça: “TikTok?! Meu filho, você quer aprender fração com dancinha?!” Mas a gente respira, porque professor tem que fazer esse exercício, respirar e expirar, faz isso por um tempo, muito tempo na verdade. E responde, com toda a diplomacia que os anos de sala de aula nos ensinam: “Tem, sim, mas o que tem lá é um resumo sem contexto, se quer entender de verdade, precisa escutar com atenção. É disso que o cidadão é feito: de pensamento próprio.”
O aluno olha, sorri e pede para ir ao banheiro, que na verdade você sabe que é para dar aquela voltinha pela escola.
E a fúria, mais uma vez, perde para o algoritmo.
Mas aí entra a curiosidade. Aquela que aparece nos olhos de uma aluna que, depois da aula, fica para perguntar mais sobre o que você falou. Aquela que não está nas redes, mas nas entrelinhas, o que não se mede em curtidas, mas em silêncios atentos.
Tem uma história que gosto de contar, e já contei mais vezes do que gostaria de admitir. Era uma turma difícil. Daquelas que chegam antes da fama, sabe? A coordenadora (na época era coordenadora) já avisa: “Eles são complicados, mas, se você conseguir conquistá-los”, bom uma frase marcada pela reticencias, porque ninguém consegue termina-la.
Mas teve um menino. Sentava lá no fundo, boné enfiado na cabeça como se escondesse os pensamentos. Nunca copiava, nunca lia, mas sempre estava atento. Um dia, no meio de uma aula sobre a história do Brasil, ele me interrompe: “Professor, mas e se hoje os povos originários resolvessem retomar suas terras? A gente podia ajudar quebrando tudo, né? Começando com esses políticos, essa galera que só quer enganar”
A sala congelou. Uns riram. Outros se assustaram. Eu sorri. “Sim, respondi. A gente podia, mas sabe o que falta pra fazer isso direito?
“O quê?”, ele perguntou, com os olhos acesos.
“Leitura.”
Ele fez cara de quem mordeu um limão, mas leu. No mês seguinte, pediu emprestado um livro de história. Depois, outro. Até que um dia chegou com um texto próprio, escrito à mão, em letra torta, falando sobre desigualdade, abuso de poder deixando uma opinião bem crítica sobre o que fizeram com os povos originários e o que fazem com o povo atualmente. Disse que queria entender melhor, queria falar melhor, disse que queria mudar as coisas, mas de verdade, não com raiva e sim com argumentos.
E foi aí que eu percebi que não se educamos seguidores, educamos cidadãos. E isso leva tempo, dá trabalho, raiva. Mas também dá esperança.
Seguidores repetem, cidadãos questionam. Enquanto essas pessoas que apenas seguem outras pessoas e compartilham frases de efeito, cidadãos escrevem as próprias ideias. Seguidores vivem de filtros, cidadãos procuram ver com clareza mesmo quando a imagem é dolorosa.
Mas a escola, essa instituição tão antiga quanto teimosa, vive agora num mundo onde tudo é rápido, raso e replicável. A gente ensina com caneta e paciência, e o mundo aprende com memes e ansiedade e essa concorrência é cruel, enquanto tento explicar o desmonte do ensino público, o aluno está vendo um vídeo de alguém enfiando a cabeça dentro de uma melancia em 4K.
E, mesmo assim, seguimos, porque temos um compromisso, ensinar a pensar, ensinar a sentir, a olhar para o outro e ver um semelhante, e não um inimigo.
Isso não se faz com fórmulas e muito menos com frases feitas.
Isso se faz com diálogo, escuta, muitos exemplos, com uma paciência que, honestamente, às vezes nem sei de onde vem.
Outro dia, recebi um bilhete anônimo (o que já é raro, porque hoje todo mundo escreve em grupos de WhatsApp, menos bilhetes). Estava escrito com letra infantil “Professor, eu acho legal como o senhor fala das coisas como se elas fossem importantes de verdade.”
Li, reli, guardei, porque ali estava o maior elogio que um professor pode receber.
Em tempos de ironia, de deboche e de superficialidade, alguém viu importância e isso é ouro. Não quero formar máquinas de repetição, eu quero formar gente que pensa, que questiona, que pergunta, pessoas que saibam dizer “não sei” sem ter vergonha do que vão pensar, que saiba buscar fontes, que não compartilhe sem ler, que entenda que viver em sociedade exige esforço e empatia.
Mas ensinar isso dá trabalho, cansa, nossa, e como cansa!
Cansa ver a educação tratada como gasto, e não como investimento, fico cansado de ver colegas adoecendo, a burocracia excessiva, o salário curto, o desprezo das autoridades, tenho ficado esgotado com a ideia de que professor é o culpado por tudo que dá errado, mas raramente é lembrado quando algo dá certo.
E, mesmo cansado, sigo. Continuo a caminhada, porque acredito que no meio da fúria e da frustração, a curiosidade ainda vive nos olhos de nossos alunos ou em um bilhete esquecido no meio do caderno.
Prossigo porque sei que educar cidadãos é plantar sementes num solo que, às vezes, parece árido. Mas a gente planta assim mesmo e sei que um dia, alguém vai florescer.
E nesse dia, tudo, até o TikTok, vai fazer sentido.
E você, leitor, quando foi a última vez que questionou algo em que acredita?
Está sendo um cidadão ou só mais um seguidor?