O grito do professor no vazio digital: ler bem ainda importa?

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Eu, que já ouvi de tudo na vida escolar, de “posso ir ao banheiro?” quinze vezes na mesma aula até “professor, o senhor sabia que cachorro sonha em preto e branco?” mas nesta semana uma pergunta quase me faz engasgar com a própria indignação quando ouvi essa pérola: “Professor, mas pra que serve ler esse texto inteiro se no TikTok tem um resumo de dois minutos?”.

Afinal, será que ler bem se resume a decorar palavras difíceis e despejá-las na redação do Enem ou devorar livros como quem coleciona figurinhas? Ou será ler rápido, em uma plataforma que promete transformar qualquer mortal em máquina de leitura dinâmica?

Eu suspeito que não.

Esse mito da leitura como corrida de velocidade surge na escola, muitas vezes, por medirmos a leitura como se fosse corrida de cem metros rasos. Mas desde quando velocidade é sinônimo de compreensão? Eu mesmo conheço adultos que leem manchetes em portais de notícia e juram que entenderam o mundo inteiro. Depois, na conversa de bar, descobrimos que confundiram a crise da Ucrânia com promoção de uva-passa no supermercado.

Ler bem não é correr, é mergulhar. E mergulho exige fôlego, paciência e, às vezes, coragem para atravessar águas turvas.

Mas atualmente vejo uma competição desleal entre os livros e o celular. Confesso que às vezes sinto que disputo a atenção dos meus alunos com um rival invencível. Penso que o celular deles vibra mais do que coração de professor em fim de mês.

Enquanto tento explicar como organizar a divisão com números naturais com o quociente decimal, alguns alunos ficam preocupados em saber se seu vídeo bateu mil visualizações! Como competir com fogos de artifício digitais se a minha ferramenta é apenas… um ponto e vírgula?

Outro dia, pedi para a turma ler um conto. Resposta imediata de uma aluna: pede para o Chat GPT fazer um resumo.

Sorri amarelo, respirei fundo, e disse que assim ela perderia o melhor momento que está na viagem, porque ler é tipo estrada de terra, cheia de buraco, poeira, paisagem inesperada, e se você usa o helicóptero do resumo, até consegue chegar mais rápido, mas não sente o cheiro do caminho.

Eles riram, mas até hoje não sei se entenderam.

Para sobreviver a essa disputa, aprendi a colecionar personagens, e minha sala tem muitos. Tenho alunos que são os velocistas da leitura, devora páginas como quem devora salgadinhos, mas quando pergunto “o que entendeu? responde sempre “ah, é sobre umas coisas aí”. Tenho também, as atrizes dramáticas, lê em voz alta como se fosse novela mexicana, mas tropeça nos pontos finais, transformando um clássico em episódio de série turca dublada.

Os que mais se destacam em minha sala são os distraídos digitais que começam a ler, mas no meio da frase já estão falando de jogos on-line e outros aparatos do celular.

Esses personagens são caricaturas, claro. Mas representam os desafios reais de ensinar leitura hoje.

O pior de tudo são as políticas públicas que não leem a realidade. Acredito que, no mundo paralelo das secretarias de educação, onde surgem projetos milagrosos como kits de leitura padronizados, plataformas digitais caríssimas, apostilas que prometem alfabetização plena, eles esquecem de um detalhe importantíssimo, perguntar aos professores se tudo isso realmente funciona.

Nós, na ponta do canetão e do datashow, sabemos que ler bem exige mais do que decodificar letras. É preciso um repertório, escuta, paciência, ambiente cultural e, sobretudo, tempo que se tornou artigo em falta na prateleira da escola pública.

E quem prepara o professor para lidar com esse cenário digital caótico? Ninguém. Jogam a tecnologia no nosso colo e temos que se virar para usar essas metodologias ativas. E, diga-se de passagem, que essa frase, “metodologias ativas”, virou mantra vazio, quase um passe de mágica pedagógico. Ativa o que se quando a internet cai, a aula trava, se a plataforma não abre, o aluno se dispersa.

Já tenho falado isso em outros textos, estamos gritando no vazio. Há dias em que sinto que estou gritando dentro de uma sala lotada e, ainda assim, ninguém me ouve.

Falo sobre personagens, metáforas, sentimentos e o retorno é silêncio, ou, pior, uma mão levantada para perguntar quantas linhas deve ser a produção de texto, como se fosse um castigo terrível!

É nesses momentos que penso se ainda faz sentido lutar contra essa maré de superficialidade.

Mas então, como em novela, acontece a cena que salva a semana, um aluno levanta a cabeça e relata como foi comovente sua leitura do livro que retirou na biblioteca. Pronto, o coração se aquece e o professor volta a acreditar nas pequenas vitórias.

Ensinar leitura hoje é cultivar sementes em solo pedregoso onde muitas vezes, regamos durante meses sem ver broto algum, mas, de repente, no meio do concreto digital, surge um aluno que descobre um poema, aquela aluna que escreve seu primeiro texto com orgulho, a criança que pede emprestado um livro para levar pra casa.

São nesses momentos que percebo que ler bem não é decorar, não é correr, não é resumir. Ler bem é se deixar afetar quando o texto se mistura com a vida e provoca um sorriso, raiva, lágrimas e indagações.

Não podemos fingir que a crise da leitura é apenas culpa dos alunos, vivemos em um país onde a média de livros lidos por pessoa é vergonhosa, as bibliotecas escolares fecham mais do que abrem, os livros didáticos, muitas vezes, parecem manuais de sobrevivência em Marte.

E ainda ousamos cobrar das crianças que “leiam bem”, sem oferecer modelos de leitores apaixonados ao redor.

Então o que é ler bem? Para esse professor é resistir, pois no fundo, ensinar leitura na infância hoje é ato de resistência. É acreditar que, mesmo em meio ao bombardeio de telas, ainda existe espaço para a magia de uma boa história e insistir que a leitura não é só técnica, mas experiência humana, um mergulho no outro, um espelho de nós mesmos.

Não quero que meus alunos apenas leiam rápido ou tirem boas notas em provas padronizadas. Quero que, um dia, sentados no ônibus ou deitados no quarto, encontrem num livro uma resposta para a solidão, um consolo para a tristeza ou uma gargalhada inesperada. Isso, pra mim, é ler bem.

E agora, leitor?

Será que estamos dispostos, como sociedade, a cultivar leitores de verdade ou vamos continuar terceirizando à escola e culpando as crianças pela superficialidade que nós mesmos alimentamos?

Afinal, ler bem não é apenas habilidade escolar, é um exercício de humanidade e convenhamos, a humanidade anda precisando de mais leitores atentos.