Entre memes, metáforas e mal-entendidos, a escola resiste ensinando que o essencial mora nas entrelinhas.
por Alberto Martins Cesário, professor e escritor
Às vezes, quando explico o que é ironia para o 5º ano, tenho a sensação de que estou tentando ensinar um peixe a respirar fora d’água. Eles me olham com aquele ar de “professor, fala logo a resposta”, como quem quer tirar um atalho entre o literal e o sentido escondido. E eu, que ainda acredito no poder das entrelinhas, fico ali tentando convencer um grupo de nativos digitais de que nem tudo o que se diz é o que se quer dizer.
“Então, crianças”, começo, tentando parecer animado, “quando alguém fala ‘nossa, que beleza de bagunça’, ele está elogiando de verdade?”
Silêncio! Um mexe no estojo, outro ajeita a pulseira, alguém murmura “acho que sim, né?”.
Aí entra aquele aluno de comentários ácidos e sinceridade de pedra e diz que depende… Porque se for minha mãe, é ironia, agora se for meu pai, é desespero. Pronto, ali estava o ouro das entrelinhas, a vida como tradutora da linguagem.
E eu, que adoro quando a vida invade a aula sem pedir licença, aproveito para sorrir, aquele sorriso de quem acaba de ver a poesia passar, disfarçada de piada infantil.
Atualmente, lidamos com a pressa dos tempos e a preguiça do sentido e ensinar o “não dito” é quase um ato de rebeldia. Vivemos a era do texto instantâneo, da risada pronta, do emoji que resume tudo o que uma boa metáfora demoraria uma vida para dizer.
O aluno lê “O Pequeno Príncipe” e pergunta se tem versão em vídeo curto e a turma ri de um meme antes mesmo de entender o motivo, imagina quando eu resolver falar de Machado de Assis, tenho certeza que alguém perguntaria se ele “tinha canal no YouTube”.
Minha reação rir também, porque se não rirmos, enlouquecemos, mas é um riso de quem sabe que a superficialidade anda ganhando terreno, percebo que as crianças da escola que leciono não nasceram para decifrar enigmas, nasceram para deslizar o dedo e receber respostas em menos de um segundo.
E como ensinar o silêncio, a pausa, o duplo sentido nesse mundo em que até a respiração virou “skip ad” (sabe, aquela expressão em inglês que aparece nos vídeos das plataformas (como YouTube, TikTok, ou outros sites) quando você pode “pular o anúncio” depois de alguns segundos.
Talvez seja isso o que mais cansa o professor hoje: a sensação de estar tentando explicar a chuva a quem só quer o Wi-Fi funcionando.
Escuto muito isso hoje em dia “não adianta ensinar isso às crianças”, para esse professor é um mito da atualidade.
Muita gente acha que ironia, metáfora e sutileza são assuntos para “gente grande” e que a criança não entende, que o cérebro ainda não está pronto, que “elas só pensam literal, mas quem já ouviu uma criança brincar com as palavras sabe que isso é mito.
Elas entendem o humor do absurdo, percebem quando o adulto fala uma coisa e sente outra, captam o tom antes da palavra, o que falta é a chance de exercitar isso.
Outro dia, fizemos um jogo onde eu escrevia na lousa a frase “Hoje o céu está de mau humor” e pedi para interpretarem.
Um grupo achou que era “chuva chegando, outro disse que era porque o sol não veio trabalhar, e meu alecrim dourado (sempre ele) completou “Ou porque o céu cansou da gente.”
Olhei para ele e pensei, o garoto entendeu a metáfora, a filosofia e a melancolia do século XXI, tudo em uma só frase, depois dizem que criança não entende sutileza.
Há dias em que entro na sala com o mesmo ânimo de quem vai disputar atenção com o TikTok, eu explico a diferença entre “rir de” e “rir com”, e percebo que as piadas do recreio têm mais audiência que a minha aula, tento usar memes para aproximar e acabo me sentindo um tio esforçado que aprendeu a dançar para agradar os sobrinhos.
É frustrante, confesso, um professor competir com o algoritmo. Porque a escola foi feita para o tempo da conversa, e o mundo agora é feito de interrupções, enquanto preparo uma aula sobre metáforas, o algoritmo prepara outra mais colorida, mais barulhenta e pior, personalizada.
E o aluno chega a mim já treinado para pular o que não entende.
A ironia?
Estar tentando ensinar justamente o contrário, que o que não se entende é o que mais ensina.
Tem horas em que me sinto um intérprete de um idioma em extinção, tento explicar para crianças que as palavras têm camadas, que o “tudo bem” pode ser “tudo bem mesmo” ou “tudo péssimo disfarçado de tudo bem”.
Nós professores acabamos nos tornando tradutores de silêncios. Mas vejo que alguns olhos se acendem, porque eles também percebem quando um amigo está triste, mesmo dizendo que está feliz, só não sabiam que isso também era linguagem.
A escola precisa ensinar a leitura do invisível, mas as políticas públicas continuam presas à decodificação da sílaba, não à decifração da alma. Querem que o professor ensine a ler textos, não a ler o mundo, e assim seguimos formando leitores de provas, não de pessoas.
De vez em quando, me pergunto se alguém, lá em cima, nas secretarias e gabinetes, entende o tamanho do abismo entre o currículo e o cotidiano, e nos colocam para construir pontes para atravessar esse abismo, mas falta madeira, falta tempo, falta chão.
Mas há dias em que o improvável acontece, como naquela manhã de terça-feira, quando chovia tanto que a escola parecia um barco cansado. Eu falava sobre o poder das palavras e pedi para os alunos escreverem uma frase que tenha um sentido escondido, algo que o leitor precise descobrir.
Uma aluna tímida, dessas que falam baixo até para pedir o lápis, escreveu, meu coração está gripado.
Li, engoli o riso e perguntei o que isso queria dizer, e ela respondeu que ele anda meio resfriado de alegria. A sala riu, eu também, mas por dentro, algo se ajeitou. Ali estava a beleza do que tento ensinar todos os dias quando digo que a linguagem é o espelho da alma quando a alma tem coragem de se mostrar pelas frestas e que as sutilezas salvam o dia.
Só sei que entre o emoji e a epifania, não culpo as crianças por viverem entre memes e curtidas, elas nasceram em um mundo onde o riso vem pronto, embalado e entregue em pixels.
Mas o que a escola pode e deve oferecer é o espaço da dúvida, do silêncio, da pausa que convida à escuta.
Quando ensino metáforas, estou, na verdade, ensinando empatia e a capacidade de olhar além, de perceber que há mais coisa em jogo do que a palavra dita, quando falo sobre ironia, estou ensinando resistência e a arte de rir sem se render.
Um bom leitor é aquele que sabe que o texto mente e, mesmo assim, continua acreditando que a verdade mora ali, disfarçada.
Tenho a impressão de que, se a escola sobreviver aos próximos anos, será porque há professores teimosos o bastante para continuar acreditando na beleza do inútil, isso mesmo, do inútil. Porque ensinar metáfora num mundo que só valoriza o que dá lucro é quase um ato de loucura, mas é dessa loucura que nasce o humano.
A cada vez que um aluno descobre o duplo sentido de uma frase, algo se reconecta dentro de mim, é como se, por um instante, o barulho do mundo diminuísse, e eu ouvisse entre as risadas e os cliques dos celulares o som mais raro da educação contemporânea, o som da compreensão, sabe aquele silêncio que não é desatenção, mas espanto, mostrando que a escola é um lugar de resistência.
A esperança está nas entrelinhas e talvez ensinar o “não dito” seja isso, plantar perguntas num terreno árido de respostas prontas.
Ensinar as crianças a perceber que há mistério nas palavras, que o humor é também uma forma de dor disfarçada, que a ironia pode ser uma defesa e a metáfora, um abrigo e, no fim, perceber que quem mais aprende sou eu.
Porque toda vez que uma criança entende uma metáfora, o mundo fica um pouco mais respirável e quando uma turma inteira ri da mesma ironia, sinto que ainda há esperança não só na educação, mas na humanidade.
Saio da sala cansado, mas leve, pensando que talvez o segredo não seja competir com o TikTok, mas ensinar o aluno a ver poesia até no TikTok, mostrar que o “não dito” está em todo lugar, esperando um olhar mais demorado.
E, enquanto fecho a porta da sala, uma pergunta me acompanha pelo corredor, feita por mim mesmo, em silêncio:
Será que um dia ainda aprenderemos, como sociedade, a ler o que está nas entrelinhas, antes que as entrelinhas desapareçam de vez?