Ler é ver o invisível

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

por Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Se me perguntassem o que é “ler bem”, eu responderia sem abrir o livro, é saber decifrar o silêncio entre as linhas da vida e entender o olhar de uma criança antes que ela diga o que sente, percebendo que o mundo anda em letras miúdas e que, às vezes, o parágrafo mais importante de um dia cabe num gesto, num abraço ou em um “tá tudo bem, professor?”.
Mas, claro, o sistema quer número, gráfico, índice de fluência, teste padronizado, planilha colorida. Quer saber quantas palavras por minuto a criança lê, e não quantos mundos ela compreende.

Outro dia, numa dessas reuniões de pais, uma mãe me perguntou se o filho “já lia bem”. Eu hesitei, este aluno ainda trocava algumas letras, sim, mas lia o mundo com uma sensibilidade que poucos adultos têm. Notava quando um colega estava triste, percebia quando a tinta da caneta estava chegando ao fim e eu fingindo não ver, para não interromper a aula, mas ele levantava e me dizia baixinho, professor o senhor precisa recarregar sua caneta, com aquele sorriso cúmplice de quem entende que a aula é um teatro e que a gente improvisa o cenário todo dia.

Mas como explicar isso numa reunião de pais? Como traduzir empatia em escala de proficiência?

Respondi o que pude para aquela mãe sedenta em saber se o filho já lia bem, “ele está aprendendo e lendo muito mais do que a senhora imagina.”

A mãe sorriu sem entender direito e eu fiquei ali, com vontade de dizer que o filho dela talvez ainda tropece nas sílabas, mas já lê a alma do mundo com uma fluência rara.

A verdade é que confundimos alfabetização com encantamento, ensinamos a juntar letras, mas esquecemos de ensinar a separar as dores, fazemos as crianças lerem textos, mas não as ensinamos a se lerem e a lerem os outros.

E aí, quando percebo que o aluno consegue ler “cachorro”, mas não percebe quando o colega está sendo excluído da brincadeira, sinto que algo ficou fora da lição.

A leitura do mundo deveria vir antes da leitura da palavra, como já nos ensinava Paulo Freire, mas o cronograma escolar tem muita pressa e pouca poesia, quer resultados, não relações.

Vivemos uma era em que o livro perdeu a disputa com a tela e, convenhamos, a concorrência é muito desleal. Como competir com um aplicativo que promete resumir textos em 30 segundos, com trilha sonora e emojis saltando da tela para chamar ou desviar a atenção!

Os alunos chegam dizendo “professor, já sei o que acontece no final deste livro, e eu respiro fundo, conto até dez (em parágrafos curtos) e respondo, “mas você já leu o que acontece antes do final?”

Silêncio, o algoritmo não responde isso, porque ler o mundo é mais do que entender a história, é entender a humanidade por trás dela. E a humanidade anda distraída, o tempo que antes era de leitura virou de rolagem infinita onde o polegar virou o novo lápis.

Hoje, os alunos leem mil frases por dia nas redes sociais, mas poucas os atravessam, estou vendo textos virarem mercadoria de consumo rápido, cabe num story e morre em 24 horas.

E nós, professores, ficamos ali, tentando competir com o brilho da tela e o humor do meme, buscando ser relevantes numa sala onde o verdadeiro desafio não é ensinar o conteúdo, mas disputar atenção com o mundo.

Não sei vocês, mas tem dias em que me sinto um vendedor de sonhos na feira livre das distrações, eu chego com um livro aberto e a turma me olha como quem vê um disco de vinil, bonito, mas ultrapassado.

— Professor, isso dá pra ver no YouTube?

Dá, respondo, mas o vídeo não tem cheiro de papel, nem o som da sua voz tropeçando nas palavras novas e, no fundo, sabemos que são esses tropeços que ensina mais do que a fluência, é o erro que ensina a ler devagar, a prestar atenção.

Não é fácil ensinar profundidade em tempos de superficialidade, a sensação, às vezes, é de estar lançando mensagens em garrafas num mar de notificações onde cada nova tentativa, o barulho das redes cobre a voz da escola.

Se falamos de Monteiro Lobato, alguém pergunta se o Sítio do Pica Pau Amarelo tinha Wi-Fi, fala de Ruth Rocha e escuta, “mas tem versão em vídeo, professor?”, resolve trabalhar histórias em quadrinhos da turma da Mônica e metade da sala só conhece o desenho que viralizou no YouTube, comenta sobre uma fake news e o aluno ri, “mas eu vi no TikTok, é verdade sim!”.

E eu, como tantos professores, ficamos ali, tentando mostrar que ler é mais do que ver, é sentir, imaginar, duvidar, tentando mostrar que as histórias não estão só nas telas, mas também no jeito como a vida se conta sozinha, quando a gente presta atenção. E seguimos insistindo, remando contra o algoritmo, acreditando que uma palavra ainda pode ser farol.

Mas o problema não é só a tecnologia, o caos se instaurou porque jogaram a escola no meio de um oceano digital sem dar colete pros professores, políticas públicas se preocupam com tablets, mas esquecem da formação humana, distribuem equipamentos, mas não distribuem preparo e querem que o professor ensine crianças conectadas, mas o próprio professor luta pra pagar o Wi-Fi.

O que me deixa mais triste é que falam em inovação, mas tratam a sala de aula como se ainda fosse 1980. Planta uma orquídea no deserto e vê se ela floresce!

E, no entanto, há dias em que o impossível acontece, outro dia mesmo, uma aluna me chamou no final da aula:

— Professor, posso te mostrar uma coisa?

Ela abriu o caderno e me mostrou uma poesia que havia escrito, e acredite, sem tarefa, só porque quis. Falava de uma estrela que lia o mar.

— Eu pensei nisso quando o senhor falou que ler é ver o que não está escrito, disse, tímida. Fiquei quieto, olhando aquelas linhas tortas, mas cheias de luz.

Naquele instante, senti que valia a pena cada “não entendi”, cada “posso ir no banheiro?”, cada noite corrigindo provas que ninguém lê depois, percebi que ali estava a prova viva de que ler o mundo ainda é possível e que o professor, mesmo cansado, ainda pode ser sementeira de sentidos.

Talvez o verdadeiro papel do professor seja esse, ensinar a ver a beleza nas entrelinhas, ver o outro antes do erro, ver a vida como texto em constante reescrita. Ensinar a criança a ler a chuva, o rosto da mãe, o barulho da cidade, fazê-la perceber que cada pessoa é um livro aberto, uns de romance, outros de suspense, e alguns com capítulos que a gente só entende quando faz a releitura do texto.

Ler bem é saber parar no meio de uma frase para escutar o vento, perceber que o mundo é uma biblioteca viva, e cada esquina tem uma história, uma resposta, um aprendizado que não está no Google.

E, falando em Google, confesso que já me peguei pedindo a ele sinônimos de esperança, porque às vezes parece que ela anda se escondendo entre as letras miúdas do cotidiano, mas basta um aluno se emocionar com um poema, ou defender um amigo, ou escrever algo bonito demais para idade, e a esperança reaparece, meio tímida, mas inteira.

A sala de aula, então, volta a ser o maior laboratório de humanidade que existe e o mais bonito é perceber que, mesmo sem manchete, o professor continua sendo o editor invisível da história social.

Enquanto o mundo grita por “influencers”, a escola insiste em formar leitores, se as telas oferecem atalhos, a leitura oferece travessias para que no fim, o olhar de quem aprendeu a ver o invisível aos olhos seja mais importante que likes em uma foto cheia de filtros.

Há quem diga que ler é decifrar códigos, eu prefiro dizer que é decifrar corações, porque quem aprende a ler o mundo nunca mais se contenta em apenas decorar palavras.

Sabe, talvez devêssemos parar de perguntar se as crianças estão “lendo bem” e começar a perguntar se estamos oferecendo algo digno de ser lido, refletir se as histórias que contamos na escola ainda tocam a vida real dos alunos, se há espaço para o encantamento. Caso contrário, a escola vira apenas uma fábrica de resultados.

Ensinar a ler o mundo é mais do que alfabetizar, é humanizar, fazer nosso aluno perceber que toda palavra tem uma alma, e que toda alma é um texto em tradução.

Então ensine que, antes de ler um livro, é preciso ler o contexto e que, às vezes, a melhor leitura não tem capa nem título, tem apenas cheiro de merenda, barulho de recreio e risada de criança.

Eu sigo acreditando, mesmo quando o barulho da tecnologia tenta calar a voz dos livros, mesmo se as políticas falharem e o desânimo rondar a porta da sala, porque toda vez que um aluno entende o mundo de um jeito novo, um novo capítulo começa.

Muitas vezes, o professor nunca irá saber o final da história, mas é ele quem escreve a primeira linha.

Então, da próxima vez que alguém me perguntar se uma criança “lê bem”, talvez eu responda com outra pergunta:

Ela já aprendeu a ler a vida?