Alberto Martins Cesário, professor e escritor
Quando alguém me pergunta, em meio ao frenesi de uma sala de aula, como está o trabalho de ensinar a ler, quase sempre respondo com uma metáfora, ensinar a ler é como ensinar a voar. Porque a leitura não é apenas uma habilidade técnica, algo que se aprende mecanicamente. Ler não é só juntar sílabas e palavras, como um quebra-cabeça cujas peças se encaixam sem que se saiba muito bem o que está sendo montado. A leitura verdadeira, aquela que vai além da decodificação, exige que o aluno faça algo muito mais complexo: ele precisa dar sentido ao que está lendo, conectar aquilo que está no papel com o que acontece no mundo e, principalmente, com aquilo que pulsa em seu próprio coração.
Na teoria, a escola sabe disso. Nas diretrizes pedagógicas, os professores são orientados a trabalhar a compreensão de texto de forma significativa, conectando o conteúdo à vida dos alunos. Mas na prática, ah, na prática, as coisas não são tão simples assim. O que se vê, muitas vezes, é um cenário de confusão e frustração, onde as crianças decodificam palavras sem conseguir captar a mensagem por trás delas. Como um turista que, ao chegar em um país novo, consegue ler os letreiros, mas não entende o idioma, elas conseguem falar as palavras, mas não se apropriam do seu significado.
É nesse momento, geralmente, que o cansaço do professor começa a pesar. Não estou falando apenas de um cansaço físico, esse, de fato, é constante na profissão. Mas sim de um cansaço mental, emocional e, por vezes, existencial. Como fazer com que esses pequenos seres, que estão apenas começando a entender o mundo, se interessem por um texto que não tem nenhuma relação com as suas realidades mais imediatas? Como convencê-los de que ler é muito mais do que decorar palavras e que entender o texto é uma chave para entender a vida?
Parece que as crianças de hoje, crescidas em um mundo digital onde tudo acontece de forma rápida, fluida e instantânea, têm dificuldade de fazer o movimento contrário: de parar, refletir, compreender. O celular, com sua miríade de estímulos visuais e interativos, transforma a leitura de um livro em uma experiência solitária e sem brilho. A ideia de pegar um livro, se perder em suas páginas e sentir que, aos poucos, aquele conjunto de palavras se transforma em algo compreensível, se tornou uma tarefa árdua. Parece que o tempo de atenção foi roubado pela urgência das notificações e pela velocidade das redes sociais. E quando se tenta exigir mais concentração, quando se pede para que a criança entenda o texto, muitas vezes o que se ouve é um suspiro, um olhar perdido e, em alguns casos, até uma resistência silenciosa.
A leitura que fazemos nas séries iniciais não pode ser encarada como uma simples habilidade técnica. Ao ensinar a ler, o professor não está apenas ensinando a articular palavras, mas a transformar o mundo em algo que se pode compreender. E isso não é tarefa fácil, especialmente em um contexto onde a cultura digital se impõe, com sua superficialidade e imediatismo, como a grande vilã do momento.
Há um aluno na minha turma, que é um exemplo perfeito disso. Ele é uma criança inteligente, com grande potencial. No entanto, seu interesse por livros é quase nulo. Quando pega um, parece estar em outro planeta, como se estivesse esperando alguma grande recompensa, como um chocolate ou um like, por decodificar aquelas palavras. Mas quando o texto é simples, ele lê, entende o básico e pronto. Quando o texto exige mais, exige interpretação, sentimento, ele se perde. Como se as palavras que leu não fizessem sentido. Em um dos últimos trabalhos, ele escreveu uma interpretação de um conto infantil que parecia mais uma lista de acontecimentos do que uma análise. Ao perguntar o que achava do texto, ele respondeu: “É só uma história, professor, por que a gente tem que fazer isso de ‘sentir’ o texto?”. E eu, sem saber muito bem como reagir, apenas disse: “Ler é fazer a história dentro de si. É como se ela se tornasse uma parte de você”.
Naquele momento, acreditei, por um breve segundo que ele poderia ter entendido, mas logo o vi mais uma vez olhando para o um celular de papel que tinha feito, talvez para acalmar a ansiedade de chegar em casa logo para pegar o verdadeiro. E me dei conta de que não estamos só tentando ensinar a leitura, mas um modo de pensar e sentir que foi diluído por uma geração conectada. Ao contrário de nós, que crescemos em um mundo mais linear e sem tanta distração, nossos alunos estão navegando por um mar digital onde tudo é efêmero, instantâneo e, muitas vezes, superficial. Eles estão acostumados a respostas rápidas do Google, a memes que traduzem emoções em segundos e a vídeos que resumem tudo em 15 segundos de entretenimento.
E, se por um lado, é necessário que a educação se atualize, que a tecnologia seja usada como ferramenta pedagógica e não como inimiga, por outro, há uma urgência em resgatar a verdadeira leitura, aquela que exige tempo, concentração e reflexão. Porque sem ela, como vamos formar cidadãos críticos e capazes de pensar por si mesmos?
O maior desafio não está apenas em ensinar a ler. O desafio está em ensinar os alunos a querer ler, a perceber que, ao folhear as páginas de um livro, estão acessando um mundo novo, mais profundo e mais rico do que qualquer algoritmo pode oferecer. E, aqui, a responsabilidade é de todos nós: pais, professores, coordenadores, gestores educacionais e até mesmo a sociedade como um todo. Não podemos continuar tratando a leitura como uma mera habilidade técnica, algo que se aprende apenas para cumprir um requisito. Precisamos entender que, ao ensinar a leitura, estamos ensinando a pensar, a sonhar e, acima de tudo, a viver.
Os momentos de vitória são poucos, é verdade. Mas quando, em meio ao caos das distrações digitais, uma criança se entrega verdadeiramente a um livro, e eu vejo seus olhos brilhando enquanto ela começa a compreender a história, aí sim, eu percebo que vale a pena. São esses momentos que me renovam as forças e me fazem continuar, dia após dia, a enfrentar o grande desafio de ensinar a ler de verdade.
Por isso, ensino a ler, não para que os alunos possam simplesmente ser bons decodificadores de palavras, mas para que possam ser bons decodificadores do mundo. Para que, ao lerem, sintam que as palavras podem transformar a realidade. Para que, ao olhar para um livro, eles não vejam apenas papel e tinta, mas uma janela para o que há de mais humano no universo.
Agora, eu deixo uma reflexão para vocês, será que, ao ensinar a ler, estamos, na verdade, ensinando a viver? Ou estamos apenas preparando nossos alunos para o vazio da superficialidade digital que os cerca?