Por Alberto Martins Cesário — Professor e escritor
Em algum momento entre o surgimento das redes sociais e a substituição da vírgula pelo emoji de carinha nervosa, perdemos o fio da meada da leitura profunda. Aquela leitura com tempo, respiro, compreensão, empatia. Aquela leitura que não se resume a entender o que está escrito, mas a entender o que está dito. E mais ainda: o que não está dito, mas pulsa por entre as entrelinhas. Em pleno 2025, o colapso da interpretação textual virou epidemia silenciosa, dessas que não provocam tosse, mas causam ataques de intolerância, fake news, surtos coletivos de ignorância e uma preguiça crônica de pensar.
É, meus amigos, estamos diante da morte da leitura profunda.
Mas antes de escrever esse obituário, vamos falar de quem ainda insiste em ressuscitá-la: o professor.
Vamos começar com um dado técnico-pedagógico-científico-emocional que não se ensina na faculdade, mas que todo docente conhece desde o primeiro “bom dia” ignorado em sala: o professor é um milagreiro. Um fazedor de milagres com os recursos que tem (às vezes nenhum) e com uma fé quase religiosa de que aquilo tudo vai dar certo. Mesmo quando tudo parece desabar, ele respira fundo, solta um “vamos tentar de novo” e recomeça. Porque desistir nunca foi verbo de conjugação escolar.
A leitura sumiu no pulo da timeline. Às vezes tenho a sensação de que aquele menino que lia “O Pequeno Príncipe” hoje está lendo legenda de TikTok como se fosse poesia moderna. A menina que chorava lendo “A Bolsa Amarela” agora só derrama lágrimas lendo hate nos comentários. A culpa é da tecnologia? Claro que não! A tecnologia é uma ferramenta. Mas uma ferramenta mal usada vira arma. E a escola tem enfrentado essa artilharia pesada com quadro branco e um pincel quase seco.
Ler um texto inteiro hoje parece tortura medieval. Se o parágrafo tem mais de cinco linhas, o aluno já faz aquela cara de “tá difícil, hein, profe?”. Ler e interpretar, então? É quase um ato revolucionário. Porque interpretar exige pausa, escuta, sensibilidade. E o mundo de 2025 corre como se estivesse atrasado para um apocalipse.
E como chegamos até aqui? Talvez o primeiro aviso tenha sido quando começaram a dizer que “textão no Facebook ninguém lê”. Depois vieram os áudios de dois minutos que ninguém mais escuta até o final. E aí o hábito de ler com profundidade foi se perdendo, engolido por curtidas e algoritmos.
O problema é que, quando as pessoas desaprendem a ler de verdade, também desaprendem a viver em sociedade. Porque interpretar um texto é também interpretar o outro. É se colocar no lugar dele. É perceber as sutilezas. É entender a diferença entre ironia e ofensa, entre metáfora e mentira, entre opinião e desinformação.
É por isso que, quando um professor insiste em trabalhar interpretação de texto com seus alunos, ele não está só ensinando língua portuguesa. Ele está ensinando empatia, civilidade, democracia…
Agora, pense comigo: o que leva alguém a entrar numa sala de aula com goteira no teto, sem livro, sem apoio, sem valorização, e mesmo assim falar de Machado de Assis como quem apresenta uma joia rara? O que faz um professor inventar teatro de fantoches com caixa de papelão só para ensinar pontuação? O que move alguém a corrigir cinquenta redações num sábado à noite?
É o que eu chamo de pedagogia da esperança. Uma esperança que não se compra no mercado, nem se aprende no PowerPoint da formação continuada. Uma esperança que nasce do chão da sala de aula, das perguntas sinceras dos alunos, do brilho nos olhos quando um deles descobre que sabe mais do que achava que sabia.
Mesmo sem salário justo, sem plano de carreira, sem respeito social, o professor resiste. Com sarcasmo, sim. Com memes no grupo dos professores, claro. Mas também com amor. Com estratégia. Com a certeza de que educar é construir o amanhã — mesmo quando o hoje está desmoronando.
E o que é que o professor faz? Vamos ao campo de batalha, vulgo sala de aula dos anos iniciais. Lá, o professor já entendeu que o texto do livro sozinho não segura ninguém. Que o PDF não emociona. Que o quadro com cópia não cria pensamento crítico. Então ele reinventa.
Ele traz letra de música, bilhete de mãe, receita de bolo. Usa história em quadrinhos, rótulo de shampoo, postagem de rede social. Convida os alunos a escreverem finais alternativos para contos, criar clubes de leitura, transformar a sala em biblioteca. Faz leitura compartilhada, leitura dramatizada, leitura cantada, leitura sussurrada.
Ele ensina que interpretar não é decorar a resposta da apostila. É pensar com autonomia. É duvidar com responsabilidade. É argumentar sem agredir. É entender antes de reagir. Um ato político, no melhor sentido da palavra.
A luta é dura, mas a letra resiste. Nada disso é fácil. Há dias em que o professor se sente vencido. Quando vê que o aluno prefere repetir o que ouviu no YouTube a formar uma opinião própria. Quando percebe que os pais estão mais preocupados com nota do que com aprendizagem. Quando a gestão cobra resultado sem oferecer condição.
Mas mesmo nesses dias, o professor se levanta. Porque ele sabe que está formando leitores do mundo. Sabe que, se não for ele, quem será?
Aliás, já parou para pensar que, em pleno 2025, os influenciadores educacionais mais seguidos não são professores? Que o saber virou produto? Que a escola virou palco de disputa ideológica, enquanto o canetão segue seco?
Pois é. E mesmo assim, o professor não desiste. Porque ele não espera valorização para se sentir valioso. Ele sabe o seu valor. Mesmo quando o país insiste em não saber.
Mas eu acredito que a leitura profunda é possível se o professor estiver no centro da transformação. E com políticas públicas que reconheçam isso. Com formação continuada de verdade, não só por exigência. Com tempo para planejar, com espaço para criar. Com voz ativa nas decisões.
E mais do que tudo: com confiança no seu próprio trabalho.
A leitura profunda não vai voltar por decreto. Vai voltar quando a gente parar de tratar educação como gasto e passar a tratá-la como investimento. Vai voltar quando os alunos forem vistos como sujeitos pensantes, e não como números de planilha.
Vai voltar quando cada escola for um território de encantamento com o saber. E isso só se faz com professor respeitado, bem remunerado, ouvido. Porque é ele que sabe como chegar no aluno. Como transformar apatia em curiosidade. Como pegar uma criança que não quer saber de ler e mostrar pra ela que todo livro tem uma aventura esperando por ela.
Um recado para você professor. Se você chegou até aqui, esse texto é seu. Porque você leu até o fim. Porque você sabe o que é interpretar um texto e também uma realidade. Porque mesmo cansado, você ainda se emociona quando um aluno acerta aquela questão difícil. Porque mesmo sem aplausos, você aplaude seus alunos. Porque você já entendeu que reconhecimento é ótimo, mas que sua força vem de dentro.
Não espere valorização. Você já é valioso. Não espere um sistema justo. Crie brechas de justiça dentro do que é possível. Faça o melhor com o que tem — até ter algo melhor para fazer melhor ainda.
Você é um leitor profundo do mundo. E está ensinando isso para outras pequenas e potentes leituras em formação. Uma a uma. Com paciência, com estratégia, com afeto. E isso… ah, isso é revolução.