Amor à primeira página…

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

por Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Era uma tarde quente, dessas em que até o ventilador parece ter desistido de fazer sua função, quando, assistindo uma formação online ouvi a professora que ministrava aquele momento, falando sobre o SAEB, lançar a frase que ecoa em meus ouvidos até agora: “Temos que namorar o texto para fazer nossos alunos se apaixonarem pela leitura.” Pronto! Ganhei não apenas o tema da minha coluna, mas também uma epifania pedagógica. Namorar o texto e ser cupido literário, a mais nova função do professor.

Apresentar Romeu às Julietas que ainda não sabem o que é um suspiro de papel. Eis a nossa missão, caros leitores, ensinar a amar o livro num mundo em que a notificação do celular lateja mais forte que o coração.

Mas antes de sair distribuindo rosas e bilhetinhos para Monteiros Lobatos, Ruth Rocha e Ana Maria Machado, convém desmontar alguns mitos sobre esse tal “ler bem” na infância. Muita gente acredita que ler bem é ler rápido, como se a criança fosse um velocista das palavras, engolindo parágrafos como quem engole coxinha na saída da escola. Outros acham que ler bem é ler difícil, se não for Machado de Assis aos oito anos, a infância está perdida. Há também os que medem o talento pela quantidade e pensam que quanto mais livros na estante, mais inteligência acumulada, como se a leitura fosse estoque de supermercado e não encontro de almas.

A verdade é que “ler bem” é menos sobre técnica e mais sobre afeto. É quando a criança encontra no livro um espelho, uma janela ou até mesmo um abrigo. Às vezes é no gibi do Chico Bento, às vezes no Diário de um Banana, e tudo bem. Não precisamos que o aluno de dez anos interprete Kant, já basta o professor que, ao tentar explicar Kant, é interpretado pelo aluno como “chato”. O que precisamos é que ele descubra o gosto, o prazer, a curiosidade de entrar no texto e não querer sair. Namorar, enfim.

Mas, convenhamos, estamos competindo com rivais de peso, e já que estamos usando o namoro como metáfora, as redes sociais são o “ficante” irresistível, rápidas, engraçadas, sempre com filtros que escondem espinhas e legendas que dispensam interpretação. Enquanto isso, o livro exige tempo, silêncio e paciência. O TikTok entrega quinze segundos de dopamina enquanto o romance entre alunos e livros pedem horas de fidelidade. É como competir com uma festa open bar usando uma garrafa de água sem gás. O professor, nesse cenário, vira aquele amigo insistente que tenta convencer o jovem a “dar uma chance para o amor verdadeiro”, e nós insistimos, mesmo quando parece que estamos falando para o vazio.

Quantas vezes não me senti gritando dentro de um túnel, ecoando sozinho, ao tentar explicar a beleza de um poema enquanto a turma discutia se fulano pegou ou não um o prémio de um jogo online que nem sei falar o nome!!! Em certos dias sinto que, ensinar leitura é como cantar bolero em meio a uma rave. O som da superficialidade é alto, luminoso, irresistível, e o bolero, coitado, quase não se ouve, mas ainda assim eu canto, desafinado às vezes, mas canto.

E aqui mora uma frustração antiga, acumulada a quase duas décadas em sala de aula, a falta de políticas públicas que nos preparem para esse cenário. Eu já disse em outros textos, nos jogam em um ringue digital sem treinamento, sem luvas, sem água no intervalo e pedem que disputemos a atenção dos alunos com plataformas milionárias de entretenimento, mas não oferecem formações consistentes, nem bibliotecas abastecidas, nem internet que não caia. Cobram resultados no SAEB, como se paixão pela leitura fosse fórmula matemática. “A turma precisa melhorar os índices”, dizem os gestores, mas quem nos ensina a ser cupidos literários? Quem nos mostra como acender o fósforo da curiosidade num coração acostumado a piscar luzinhas de LED?

Apesar disso, e talvez justamente por isso, há momentos de vitória que nos fazem permanecer. Por exemplo, quando um aluno levanta a mão e diz: “Professor, terminei o livro e me emocionei no final.” Quando a menina da fileira do canto, que nunca dizia uma palavra, pede emprestado outro exemplar “igualzinho àquele que me fez rir muito enquanto lia para a turma”. Quando o menino que só gostava de memes descobre que a piada de um personagem literário é muito melhor que a do Instagram. São migalhas de esperança, mas cada uma delas é um banquete para o professor faminto de sentido. Nesses instantes, sentimos que valeu a pena carregar os livros de casa até a escola, improvisar sarau na hora do recreio, encenar peça no meio da sala, realizar rodas de conversa para discutir se o lobo da Chapeuzinho era mau mesmo, são as flores que brotam na calçada de concreto.

Seduzir para a leitura, afinal, não é sobre técnicas mirabolantes, mas sobre presença, abrir o livro como quem abre um presente, ler em voz alta com a mesma emoção de quem conta um segredo, emprestar seu exemplar rabiscado, como quem entrega um pedaço da própria alma. Estratégias, muitas para colocar em prática. Criar clubes de leitura, encenar capítulos, propor finais alternativos, deixar que os alunos escolham o que querem ler, e não apenas o que a apostila manda, mas, acima de tudo, é mostrar que nós mesmos estamos apaixonados. Porque nenhum aluno acreditará no cupido que não acredita no próprio arco.

Ler, no fundo, é construir um relacionamento duradouro e não apenas um namoro de verão, mas um casamento que se renova a cada página. É voltar ao mesmo livro depois de anos e descobrir que ele também mudou, como um velho amor que ainda nos surpreende, aprendendo a brigar com as palavras, se reconciliar, se perder e se achar de novo, imagina, ter ciúme de personagem, sentir saudade de cenário, é rir sozinho no ônibus porque um diálogo não sai da cabeça, ler é carregar histórias no bolso como quem carrega fotografias.

E aqui encerro nossa conversa de hoje, caro leitor, com uma provocação, se a leitura é um namoro, quem tem sido o cupido na sua vida? E você, tem ajudado a alguém a se apaixonar pelos livros?

A escola pode ser palco de muitas tragédias e comédias, mas ainda é o único lugar onde esse encontro pode nascer. Sabe, eu penso que talvez a pergunta que devamos nos fazer, antes de qualquer prova, avaliação ou índice, seja esta: quem vai ensinar a próxima geração a se apaixonar pelas palavras, se nós desistirmos de acreditar no amor?