A ação, estimulada pela grande maioria dos estados, no entanto, não tem eficácia no combate à transmissão do novo coronavírus e ainda pode gerar falsa sensação de proteção.
“Posso medir a temperatura?” Junto ao álcool gel, o pedido já se tornou parte do ritual para ingressar nos estabelecimentos comerciais no Brasil. A ação, estimulada pela grande maioria dos estados, no entanto, não tem eficácia no combate à transmissão do novo coronavírus e ainda pode gerar falsa sensação de proteção.
Médicos ouvidos pelo UOL explicam que medida é atrasada: não só a febre não é mais considerada um sintoma inicial da Covid-19 como nem metade dos doentes chegam a apresentar o sintoma.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) também não recomendam a medida.
“É inútil por dois motivos: já sabemos que pelo menos metade das pessoas com covid não tem febre – mas ainda transmite – e, se a pessoa for mal-intencionada, ela toma um antitérmico e vai passear. “Raquel Stucchi, infectologista da Unicamp (Universidade de Campinas).
Ricardo Goullart, 32, fica na recepção de uma academia em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, nos períodos da manhã e da tarde. Além de checar se o aluno reservou horário no aplicativo para controlar a capacidade máxima no local, ele aponta o termômetro digital para cada um deles antes de girar a catraca.
“Assim que reabrimos, no ano passado, as pessoas estranharam. Agora, todo mundo já cumprimenta colocando o pulso para medir”, conta Goullart, que diz ter presenciado poucas ocasiões em que o aluno apresentou temperatura corporal acima de 37°C. “Voltou para casa.”
A prática se tornou comum em estabelecimentos pela cidade e pelo país. Pelo menos 23 estados e o Distrito Federal fazem a recomendação de aferição de temperatura entre as ações de combate à pandemia em seus projetos de flexibilização econômica. A medida, por sua vez, é rechaçada por especialistas.
“A essa altura da pandemia, não vejo mais motivo para continuar [com a medição]. No início, quando a gente não sabia direito, até concordava, mas é um teatro, porque você está fingindo que tem algum controle e não tem.” Rosana Richtmann, infectologista do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo.
“As pessoas não reclamam e até gostam – a maioria só não deixa na cabeça, pede para ser no pulso. Acho que se sentem seguras”, conta a recepcionista de um shopping na Avenida Paulista, região central de São Paulo, encarregada da aferição.
“Às vezes aparece alguém acima [da temperatura] e fala que estava há muito tempo no sol. A gente pede para esperar e só libera se estiver verde [abaixo do estado febril]. Se não, não entra.”
A preocupação do público com a ação fica evidente na entrada de dois shoppings na capital paulista – um na região central e outro na zona oeste – em que os medidores são digitais, por vídeo, sem controle humano.
Em ambos, os visitantes param em fila, à frente da câmera, e esperavam ser liberados pela máquina. A reportagem não acompanhou nenhum episódio em que o cliente registrou temperatura acima do indicado para saber se a recomendação seria respeitada ou não.
“A medida não só é ineficaz e inócua, como perigosa. Passa uma falsa sensação de segurança. Serve de subterfúgio para dizer que ‘fazemos controle’, ‘temos protocolo’ e, com isso, não se cobra o essencial: distanciamento, renovação de ar, controle do número de pessoas e, sobretudo, uso correto da máscara. “Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Anvisa e OMS não recomendam
Ao UOL, a Anvisa e a OMS afirmaram que a medida não pode ser considerada uma ação de combate à pandemia.
“O implemento de medidas térmicas, seja em pontos de entrada (portos, aeroportos e fronteiras), seja nas cidades/municípios é uma medida inócua, em especial se considerarmos a situação epidemiológica atual e a sobrecarga dos sistemas locais de saúde.” Anvisa.
“Os scanners térmicos são eficazes na detecção de pessoas com febre (ou seja, com temperatura corporal acima do normal). Porém, não detectam se a pessoa está infectada com covid-19. Existem muitas causas para a febre.” OMS por meio da OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), seu braço no continente.
Ainda assim, a medida segue estimulada em praticamente todo o território nacional. A Secretaria de Saúde de São Paulo foi a única a responder entre as procuradas pela reportagem.
“A pasta incentiva todas as iniciativas de combate à pandemia, como a aferição de temperatura na entrada de estabelecimentos. É fundamental que a população respeite as medidas de distanciamento social, uso de máscaras e higiene das mãos, fique em casa e siga as recomendações do Centro de Contingência”, disse a secretaria paulista.
*Com informações do UOL