Aborto urgente

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No último dia 12 de junho, quarta-feira, a Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência para o Projeto de Lei 1.904/2024, o que, regimentalmente, significa que serão puladas algumas etapas de tramitação na casa legislativa, como as comissões temáticas e a Comissão de Constituição de Justiça.

O tema da interrupção da gravidez, cuja conduta tem nome criminal de aborto, junto com o tema das drogas, se tornaram dois vórtices da política brasileira. Tanto é assim que, há cerca de 4 semanas, publiquei uma foto com minha família no meu Instagram político e uma pessoa perguntou, fora de qualquer contexto, se eu concordava com o aborto.

Apesar de, em média, o governo Lula aprovar questões estratégicas para o país, mesmo diante de um Congresso Nacional reacionário, a cada 15 dias, o que repercute realmente são estes dois temas.

É difícil precisar em que ponto as políticas públicas de desenvolvimento da educação, de combate ao machismo, ao racismo, de amparo às mulheres, de desenvolvimento agrário, de desenvolvimento da saúde, etc., deixaram de importar para a ordem do dia.

É um tema multifacetado e que comporta muitas abordagens, no entanto, a face criminológica é a que infelizmente aparece como solução simples e populista para a “cura” da sociedade.

Como diz o seguinte pensamento: soluções fáceis para problemas complexos tendem a dar muito errado.

Nunca é demais lembrar que o objetivo dessas colunas, cujo nome, não à toa, é vespeiro, é o de sair da lacração da democracia rasa dos likes em vídeos curtos, e pensar mais a fundo alguns assuntos.

Religiosamente vale a vida desde a concepção, até mesmo antes da implantação do ovo no útero. E o projeto de lei mais alinhado com esta ideia é o 434/2021, o chamado estatuto do nascituro. Ele equipara o embrião e os nascituros a pessoas já nascidas e vivas, ou seja, não haveria nem as hipóteses legais de interrupção da gravidez que hoje são permitidas pelo Código Penal, e qualquer interrupção, mesmo como fruto de estupro ou de possibilidade de morte da mãe, teríamos homicídio.

Temos que ter em mente que a justiça humana e a justiça divina nem sempre caminham juntas e em uma sociedade democrática haverá um mínimo ético para a vida em comum. Para alguém religioso, mesmo que a lei permita algo, não quer dizer que esta pessoa deve fazer este algo. Colocar na lei, porém, transforma a conduta em exigível para todos.

Criminologicamente, o aborto é prática comum e uma a cada cinco mulheres o realizará até os 40 anos. O fato de transformar a conduta em crime faz com que ela ocorra no submundo e seja mais prejudicial às pessoas mais vulneráveis socialmente. Políticas públicas de amparo às mulheres grávidas seriam muito mais efetivas e humanizadas do que simplesmente transformar a conduta em crime.

Politicamente, o tema são cascas de banana deixadas pelo Congresso para o escorrego do Palácio do Planalto. Como assim?

Com a preocupação exacerbada da extrema direita com a pauta de costumes, restou à centro-esquerda a ocupação de praticamente toda pauta econômica e desenvolvimentista, que vem incorporando até mesmo algumas pautas liberais.

Isso se reflete nos melhores índices econômicos da última década em desemprego, balança comercial e investimentos; notícias que são deixadas de lado pois logo surge criminalização do uso de drogas e de endurecimento do Código Penal para esta ou aquela conduta: se o Presidente vetar, diz-se que é anti-família; se não vetar, diz-se que não é progressista; se vetar e cair o veto, expõe-se um enfraquecimento da articulação política. Não tem escapatória.

Procedimentalmente, algo tão sensível assim não deveria ser passado em regime de urgência por um Congresso Nacional dotado predominantemente de homens sem lugar de fala para o assunto. É uma produção legislativa, infelizmente, baseada em populismos e sem evidências. Afinal de contas, o aborto está no atual Código Penal desde 1940, e agora, 84 anos depois, deve ser aprovada a alteração em urgência? Muito estranho.

Continuaremos com o tema na semana seguinte, mas para finalizar a coluna de hoje, é estranho o amálgama reacionário que está em curso no Brasil, ao mesmo tempo que viajam pelo mundo pedindo liberdade, buscam a criminalização de cada vez mais condutas e o enrijecimento do sistema penal (vide o fim das saidinhas), o que diminui e muito a liberdade das pessoas.

Bruno Arena: Mestre em Direito Penal e Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Presidente do Rotary Club Votuporanga 2022/23. Vice-Presidente da ACILBRAS. Proprietário do Cine Votuporanga. Autor e tradutor de livros. Advogado. Político. Instagram @adv.brunoarena.