Hoje, exatamente neste domingo, 28 famílias da Vila Carvalho recebem as suas escrituras definitivas, doação que será realizada pelo prefeito Joao Dado, agora pela manhã, conforme matéria publicada nesta edição, na pagina A3.
Parece não ter significado algum, mas por quase 100 anos moradores sonharam em ver este dia chegar, a maioria não conseguiu esperar. Muitos morreram por disputas de terras naquela localidade. Ali foi ponto de paragens das grandes boiadas que vinham de Cuiabá em direção a Barretos, através da velha e conhecida Estrada Boiadeira. Para marcar este dia histórico vamos contar um pouco sobre esse enigmático e centenário povoado.
A Vila Carvalho tem uma grande significação na história da expansão e crescimento econômico da região noroeste paulista. A mata virgem era densa e conjunto de altas árvores se estendia por toda a região até as barrancas do Rio Grande. Cidades? Nenhuma. Só havia como ponto de referência o pequeno povoado, chamado na época de Vila Carvalho, que com mais de cem anos, teve fundamental importância, antes da fundação de Votuporanga. Tinha a pequena vila uma área de oito alqueires, que eram ocupados por cerca de 200 posseiros que ali estavam desde 1929. O povoado foi fundado pelo coronel Felício de Carvalho que comprara, em meados de 1924, 700 alqueires de terra naquele então sertão. O coronel Felício de Carvalho foi assassinado em 1929, por Ramão Céspedes Ramos, popularmente conhecido como Paraguaio. Segundo seu filho, Abdo Carin Carvalho, um homem chamado Baliano, fora quem contratara o pistoleiro para matá-lo, pagando-lhe 12 mil réis, grande quantia na época, isto porque seu pai tinha conseguido a instalação de um distrito policial no local. Consta que Paraguaio ficara de tocaia e atirara no coronel Carvalho pelas costas. Seus filhos se mudaram e as terras foram ocupadas por posseiros. Antes, o coronel Felício de Carvalho doara ao Bispo de Rio Claro, uma parte das terras, sendo que este nunca tomara conhecimento da doação, devolvendo-as às famílias que ali moravam. Soldados do Exército Brasileiro se hospedavam ali, quando iam para as batalhas durante a Guerra do Paraguai. Uma das casas comerciais da Vila era do senhor João Batista Budim. Local bastante movimentado, já que ali era parada de boiadeiros que vinham do Mato Grasso e iam para São Paulo. Eram famosas as vendas do Moisés e João Pereira. O seu quase desaparecimento se deu pela decadência da Estrada Boiadeira. Há relatos que por ali passavam cerca de oitenta mil bois por ano em direção a Barretos. (FONTE: Memorial das Cidades)
Vila Carvalho, estrada boiadeira e o seu enigmático cemitério
O tumulo do Coronel Felício José de Carvalho
Ao longe é possível avistar o cruzeiro. Data de 1925, forjado em aroeira para marcar a fundação da Vila Carvalho, uma das corrutelas da Estrada Boiadeira do Taboado, no trecho que permeia a zona rural de Votuporanga. Assim como em todo o corredor estradeiro, instala-se ali uma paisagem bucólica, um elo quase perdido no espaço/tempo que contrasta com a moderna cidade que a compreende. A capela, as casas que conservam sua construção original, o olhar simpático e curioso que os remanescentes no povoado lançam aos forasteiros. Elementos que resistiram ao tempo e ao rolo compressor chamado progresso.
“História? Aqui tem muita história. Mas eu não quero saber de contar história, não” – me diz uma das moradoras ao negar minha investida para descobrir os causos do lugar. Esta relutância em revisitar memórias tem explicação plausível: como todos os povoados que surgiram na rota da Boiadeira, os habitantes da Vila Carvalho presenciaram a chegada de bandeirantes e tropeiros condutores de boiadas. Lá, as tropas paravam para descansar e se alimentar antes de seguir em frente. Esta passagem era frequentemente abalada por emboscadas promovidas por capangas de fazendeiros interessados nas cabeças de gado provenientes do Mato Grosso do Sul para os frigoríficos de Barretos. O próprio fundador da Vila, o Coronel Felício José de Carvalho, foi morto numa tocaia em 1929. O Coronel, assim como posseiros, fazendeiros, crianças e até indigentes, estão sepultados no Cemitério Boiadeiro, localizado a poucos minutos do vilarejo.
Para chegar até lá é preciso percorrer um confuso labirinto entre canaviais. Quando menos se espera, em uma das curvas surge um emaranhado de árvores, formando uma verdadeira construção arquitetônica natural. Estas paredes vivas lembram um santuário ou templo. Protegido no interior deste templo, delimitado por toras de madeira, encontra-se o cemitério.
Há mais de 70 anos nenhum corpo é enterrado ali. De todas as sepulturas, apenas a do Coronel Felício possui jazigo e identificação, o restante são sinalizadas por pilhas de tijolos, já revestidos de lodo. Há pouco menos de um mês, uma tempestade fez com que uma grande árvore viesse abaixo, exatamente sobre o túmulo do Coronel. Milagrosamente, o tronco foi apoiado por galhos e parou milímetros antes de atingir o jazigo e destruir a homenagem de mais 80 anos ao fundador da Vila Carvalho. A impressão que se tem, é que o incidente foi impedido por uma força não humana.
Influência sobrenatural ou não, o local esquecido parece reagir à chegada de visitantes. O ruído das árvores no meio do silêncio da zona rural é como uma conversa paralela intermitente. Espinhos de plantas rasteiras atacam os calcanhares desprovidos de proteção. Um cão nada amistoso surge, sabe-se lá de onde, latindo como um alarme apontando invasores. A sensação de hostilidade é intensa. É como se o lugar repetisse a frase que eu havia ouvido pouco antes: “História? Aqui tem muita história. Mas eu não quero saber de contar história, não”.
De fato, algumas histórias não precisam de narrador. Elas simplesmente estão ali e é possível vê-las e senti-las. O Cemitério Boiadeiro, a Vila Carvalho e cada quilômetro percorrido na Estrada Boiadeira do Taboado, têm o poder de nos transportar a um passado distante, que coexiste com o presente e nos permite (re)vivê-lo.
O Museu Municipal Edward Coruripe Costa de Votuporanga realiza passeios monitorados pela Estrada Boiadeira do Taboado. Agendamento e Informações pelo telefone: (17) 3422-4451.
Texto e fotos: Jeff Santanielo (Circuito SESC – SP)