Um crime silencioso contra a leitura

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Por Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Não houve velório. A leitura profunda morreu de inanição no canto de uma sala de aula abafada, sob olhares entediados e rubricas pedagógicas impressas em papel reciclado. Seu corpo jaz sob toneladas de plataformas digitais, simulados, planos de aula “gamificados” e programas de alfabetização que transformam os textos em dados, e leitores em zumbis operacionais.

Ninguém notou sua morte. Afinal, as crianças estão lendo “mais do que nunca”, dizem os especialistas. “Estão lendo no TikTok, nos chats, nos comentários das redes”, garantem os profetas da era digital. O que não dizem — ou fingem não ver — é que esse tipo de leitura é como se alimentar só de balas: prazerosa, rápida, viciante e completamente desnutrida. Não forma leitores. Forma consumidores.

Leitura profunda é outra coisa. Ela é difícil. Exige tempo. Silêncio. Um desconforto quase físico. Envolve fricção entre texto e sujeito. É o contrário da instantaneidade: ela se arrasta, exige releitura, desafia certezas. Não se presta ao algoritmo, não cabe em reels, não gera lucro em cliques. E, por isso, morreu sem fazer barulho.

Nas salas de aula, a interpretação textual virou protocolo. É medida por rubricas, ancorada em descritores e traduzida em gráficos para que gestores possam entender. A escola — que deveria ser o espaço da palavra — transformou o texto em ferramenta, em muleta para provas de larga escala. Não se lê para pensar. Lê-se para passar. Para marcar X. Para cumprir uma meta.

O drama maior é esse: o ensino da leitura virou instrumento de performatividade. Finge-se ensinar, finge-se ler. E quem ousa propor leitura lenta, análise estética, mergulho literário? Está fora do compasso. É romântico, ineficaz, improdutivo. “Não prepara para o Enem”, dizem os consultores. E tudo que não prepara para o Enem é descartável.

A interpretação morreu asfixiada pela pressa. E o professor: “último guardião do sentido”, uma figura que ainda insiste em manter viva a leitura. Ele é o último bastião entre o texto e o silêncio absoluto. Um anacrônico resistente. Um Dom Quixote pedagógico, lutando contra os moinhos de vento dos cronogramas, das plataformas, das competências.

Mas ninguém o ouve.

Porque o professor foi transformado em técnico. Em operador de apostilas. Em leitor de script. Em animador de conteúdo. E ele aceita, muitas vezes, porque precisa do emprego, porque ama seus alunos, porque acredita que um dia algo vai mudar.

E enquanto isso, ele lê um poema com os alunos. Faz silêncio na sala. Propõe um debate sobre um trecho de Graciliano Ramos. Interrompe o livro didático para trazer Clarice. Chama o texto pelo nome. Porque sabe que o texto só revela seu sentido quando é tratado como sujeito — e não como produto.

Esse professor não aparece no relatório. Não ganha bônus. Mas ele salva mentes. Um por um. Lento como a leitura deve ser.

Enquanto isso, as escolas são submetidas a uma espécie de necroeducação. Programas padronizados, turmas superlotadas, avaliações absurdas. Diretores pressionados. Professores controlados. Alunos domesticados. É uma máquina de moer textos, autores e pensamentos.

Os jovens entram na escola cheios de perguntas e saem com respostas decoradas. Trocam o “por quê?” pelo “alternativa correta”. E o pior: aprendem a odiar a leitura. A associá-la ao fracasso, à punição, ao tédio.

Ler virou castigo. E isso é um crime pedagógico que seguimos cometendo todos os dias, com todos os selos do Ministério da Educação.

Onde estão os livros? Eu fico me perguntando…

A bibliografia das escolas foi substituída por playlists. Bibliotecas viraram espaços de “inovação criativa”. Livros deram lugar a tablets. E as obras literárias, quando aparecem, são escolhidas por algoritmos de desempenho.

Mas um país que troca livros por aplicativos não quer leitores. Quer operadores de conteúdo. Gente que leia o suficiente para não errar no relatório, mas não o bastante para questionar o relatório em si.

A leitura profunda forma gente crítica. Gente crítica incomoda. Então a leitura precisa ser neutralizada.

E aqui vem a parte ingrata desse que vos escreve, propor soluções. Não há fórmula mágica. Mas há caminhos. E todos eles passam pelo professor.

Reduzir o número de alunos por sala. Uma aula de leitura exige escuta. E escutar 40 vozes é impossível.

Apostar em formação continuada de verdade — aquela que provoca, que tira o professor da zona de conforto, que oferece literatura, filosofia, psicanálise, não só “novas metodologias”.

Criar políticas públicas que garantam acervo literário de qualidade em todas as escolas, inclusive (e principalmente) nas mais vulneráveis.

Defender a centralidade da leitura na escola. Não como ferramenta, mas como valor. Como prática civilizatória. Como direito humano.

Empoderar o professor como mediador cultural, não como executor de tarefas. Deixar que ele escolha textos, metodologias, ritmos. Ele sabe o que faz — mesmo quando o sistema duvida.

A leitura profunda só renascerá quando resgatarmos três valores fundamentais que a escola contemporânea despreza: tempo, silêncio e conflito.

Tempo, para que o aluno possa se perder na leitura. Errar. Voltar. Recomeçar. Tempo para ler sem culpa, sem cobrança, sem nota.

Silêncio, esse bem precioso que hoje é confundido com ausência de engajamento. Silêncio de concentração, de mergulho. Leitura não se faz aos gritos.

Conflito, porque todo bom texto provoca. Faz pensar. Faz discordar. E a escola precisa ser o espaço onde o pensamento pode — e deve — entrar em conflito com o mundo.

Não sou otimista. Mas também não sou cínico. A leitura profunda está em coma, sim. Mas não morta. Ela respira pelas mãos de professores anônimos, em escolas invisíveis, em cidades esquecidas.

Ela sobrevive nos olhos de um aluno que pela primeira vez se emociona com um poema. Sobrevive na sala onde um professor fecha o livro didático e lê um conto de Mia Couto, só porque sente que ali há algo vivo. Sobrevive quando uma aluna pergunta: “Mas, professor, por que esse personagem fez isso?” — e o professor responde: “O que você acha?”.

Ela sobrevive toda vez que alguém escolhe a leitura, mesmo quando tudo ao redor diz que ela não serve pra nada.

Talvez, no fim das contas, ensinar a ler seja isso: um ato de fé. Uma insistência.

E que bela insistência.