A língua portuguesa tem palavras que de cara parecem como sinônimos.
Veja bem, se você atende o telefone e fala uma, duas vezes “alô” e ninguém responde, logo diz: “o fulano não está me ouvindo”. Mas também você pode dizer “o fulano não está me escutando”. Veja que tanto você usando “escutando” ou “ouvindo”, fica claro que você está querendo dizer que a pessoa lá do outro lado, não está recebendo o que você está dizendo.
Mas longe aqui de ser uma dica de português, a ideia é separar o ouvir, do escutar. Existe uma diferença entre esses dois termos e para nós interessa porque está ligado diretamente ao comportamento. Veja que o ouvir está ligado a um dos nossos sentidos, ligado ao ouvido, logo, então, quem tem ouvido, ouve. Então eu posso dizer que os animais ouvem, sim.
Alguns até repetem o que a gente diz, quem já não ouviu um papagaio cantando, repetindo o que ouve em volta? Eles têm o sistema auditivo.
Agora, o escutar está diretamente ligado ao sentido que coloco naquilo que eu ouço. É a atenção que eu dou àquilo que eu estou ouvindo; é o estar atento, bem diferente de entrar por um ouvido e sair pelo outro.
Escutar é nobre. Acho até que escutar seja raro, parece que o barulho a nossa volta atrapalha a gente a escutar.
E o mundo está ficando cada vez mais barulhento, nós estamos mais barulhentos: o barulho da preocupação, da ansiedade, de como responder àquilo que nós estamos ouvindo, de como impressionar o outro com a minha resposta. Quantas vezes interrompemos o outro até sem acabar de ouvir; já deduzindo o que ele quis dizer e vamos respondendo, até como uma defesa.
Tenho a convicção de que escutar é uma das formas de amar.
É dar lugar à palavra do outro, sentir o que o outro está expressando sem medo de se tornar vulnerável à palavra que está sendo dita por ele.
Somos tão acostumados a não escutar, que nem paramos para escutar o que se deve escutar.
Uma criança já com dois, três, no máximo quatro anos, praticamente domina toda a fala, alguns já esboçam até algumas palavras em outro idioma, lembro meu sobrinho, bem novinho com dois, três anos, já falava as cores em inglês, contava até dez em inglês; acontece que às vezes se morre com cem anos e ainda não aprendeu a escutar.
Se aprende a falar com muita facilidade, mas escutar, é raro. Tente escutar agora o que eu estou dizendo, mesmo em palavras escritas.
Veja o exemplo de um violão; você sabe que o violão é um instrumento que para ser usado precisa ser afinado. Você já deve ter visto alguém encostando o ouvido bem próximo ao violão e apertando, soltando as cordas, interagindo com o instrumento mesmo… se você não toca violão, se você não sabe afinar violão, vai ouvir um som ali e não vai conseguir separar as notas; precisa de treino, talvez de dom, mas também a sensibilidade em diferenciar uma nota da outra, senão você vai estar ali só ouvindo, um som aleatório.
Lembro que quando comecei a aprender a tocar violão, eu não conseguia afinar, e quem afinava para mim era meu avô, eu ficava ali admirado; ele batia as cordas, ia apertando um pouquinho, soltava um pouquinho e falava “ah, agora sim; agora está bom” e para mim estava tudo igual. Acontece que ele estava escutando, percebendo a diferença entre afinado ou não, e eu estava simplesmente ouvindo.
Esses barulhos que falei que atrapalham a gente escutar, estão “mais altos” ultimamente, e até ajudados pela modernidade.
Ainda no exemplo do violão, para você ter uma ideia, qualquer violão que você compre, não precisa ser muito caro não, ele já vem com um afinador automático digital: você bate a nota e ele vai pedindo para você subir, para você baixar, até chegar na afinação. Percebe que ele substitui a sensibilidade, a intimidade do músico com o instrumento?
Também nas redes sociais, sites de notícias, somos bombardeados com tantas coisas que nem dá tempo de escutar. Tem hora que a gente ouve e repassa aquilo que ouviu, isso vai se disseminando, e até destruindo reputações.
Não estamos tendo tempo de escutar a nota do outro; de escutar o que ele diz. A gente aceita o desafinado mesmo, como se tudo fosse igual.
Uma vez eu fui fazer uma palestra que tinha um grupo, penso que umas trinta pessoas que eram deficientes auditivos e outros eram deficientes visuais. Sinceramente na hora fiquei preocupado, era novidade para mim, apesar de ter uma mulher, que iria fazer a tradução, mas não deixava de ser novidade, como eles iriam reagir.
Peguei o violão para testar o som, mal bati o primeiro acorde e um senhor ali no grupo dos cegos falou até em voz meio alta: “Moço! O “MI” do seu violão está desafinado”. Eu não sabia se ria, se respondia, sinceramente fiquei todo sem jeito; me impressionou a sensibilidade do ouvido daquele homem. Sem me ver, sem saber que tinha um violão ali, no primeiro som ele percebeu que havia uma nota que não estava certa. Isso é “escutar”. É ir além.
Veja que o seu saber escutar pode afinar a nota desafinada de alguém que te fala.
Às vezes o que as pessoas precisam é só de alguém que verdadeiramente as escutem. É isso que os psicanalistas fazem. Eles escutam; conseguem ler o que às vezes as palavras não dizem.
Você nunca irá ouvir um silêncio, mas com certeza você pode sim escutar o silêncio de alguém.
Olavo Bilac em uma de suas poesias diz assim: “eu posso ouvir as estrelas, basta abrir a janela”.
E o escutar é isso! É a luz que acaba com a escuridão da ignorância. Se você somente ouvir, aumentam suas chances de continuar ignorante. Se os outros escutarem e você só ouvir, nunca vai ter consenso.
Imagine um grupo de pessoas dançando. O que será que uma pessoa que não ouve pensaria vendo a cena? Imagine você, vendo pessoas dançando, mas não ouvindo a música; parece que tem um bando de loucos A importância do escutar, está atrelada a muitos atos.
Muitas vezes para compreender as pessoas, eu preciso escutar o que elas não estão dizendo, aliás, o que talvez elas nunca dirão…
E olha, muito facilmente você vai encontrar por aí ofertas de cursos de oratória, mas eu quero encerrar aqui sugerindo um curso diferente: que tal o curso de “escutatória?”. Aliás acho que nem exista essa palavra, mas curso de oratória continua em alta.
Quem nos ensinará a escutar?
Esse sim, seria capaz de acabar com a surdez daqueles que só sabem ouvir!
Por Carlinhos Marques
Presidente Fundador da Comunidade Terapêutica Novo Sinai, que acolhe dependentes químicos desde 2005 de forma voluntária e gratuita, idealizador do projeto “Sobriedade Já”
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