Sobriedade Já: O MI ESTÁ DESAFINADO…

927

Recentemente fiz uma palestra para um público no mínimo diferente dos demais que tenho feito.

Me convidaram pra falar para surdos e cegos.

Óbvio que de cara me disseram que para os surdos haveria tradução simultânea em libras e os cegos simplesmente não me veriam, mas com certeza entenderiam tudo me ouvindo, apesar que para a comunicação completa é muito importante a expressão facial, todo nosso gestual, então confesso que me senti um tanto inseguro, seria uma novidade pra mim, com os cegos talvez nem tanto, mas com surdos pensei na possibilidade da tradução não ser tão fiel, e algumas coisas fossem transmitido de forma que não expressasse o que realmente gostaria passar ali.

Acontece que fui surpreendido antes de começar a falar. Estava eu ali testando microfone, passando o som do violão, ajustando os detalhes, na hora que toquei um acorde, uma pessoa do meio do público gritou:

“Carlinhos o Mi está desafinado.”

Aquilo me desconsertou de imediato, nem tinha começado a falar e a cantar, e o cara ali tido como o “com deficiência” já estava me corrigindo, dei uma risadinha meio sem graça, e fui conferir, estava mesmo.

Comecei minha fala. Falei sobre as oportunidades que surgem nas adversidades, sobre deixarem de lado o vitimismo, sobre superação, como se fosse necessário né? E nesses casos a gente acaba aprendendo mais que ensinando.

Terminou, então fui conversar com o rapaz que me alertou do tal Mi desafinado, e disse que gostava muito de música, e que até tocava um pouco de violão.

Só estou trazendo esse fato, porque o que me chamou muito a atenção, foi a sensibilidade aguçada do ouvido daquele homem, não foi o ouvido de músico dele, nem músico era, mas a sensibilidade de um ouvido atento, que sutilmente percebe o errado.

Hoje carecemos muito de sensibilidade, de sensibilidade no geral, penso que a pressa nas coisas e pelas coisas, a tecnologia, está deixando o ser humano muito mais frio, muito mais insensível.

Veja, quando comecei a aprender tocar violão, tinha bastante dificuldade para afinar, então era meu avô que afinava pra mim, parece que estou vendo a postura dele diante do violão, aproximava o ouvido perto das cordas sentia, vou repetir, sentia o som, e então ia ajustando corda por corda, até chegar na afinação correta.

Hoje, qualquer violão, do mais simples que você comprar ele vem com um afinador eletrônico, meu celular tem um aplicativo que é um afinador, é um exemplo simples mas isso coopera com a “falta de treino” para a sensibilidade, temos as coisas muito mais prontas, estamos desaprendendo a sentir o que não seja o óbvio, e nos tornando pessoas menos seletivas, veja a qualidade das músicas que está se consumindo atualmente, refrões repetitivos, melodias pobres, estamos mais influenciáveis, aliás se criou um novo personagem adjetivado como influencer, que nas redes sociais influenciam milhões, que infelizmente não estão tendo tempo nem o direito de ouvirem “as notas desafinadas de suas vidas” recebem as notas prontas, como se fossem certas, enfim, estão tendo suas vidas afinadas pelos outros, bons tempos quando os pais eram os maiores influencer de seus filhos, hoje se contentar a terceirizarem esse papel a figuras como Anitta, Felipe Neto, Pablo Vittar, e por ai vai.

A exigência seletiva que qualifica as coisas e os sentimentos está muito rasa, relacionamentos são líquidos, pobres, aquela coisa de tato, de cheiro, de sentir, de ouvir, está perdendo espaço.

Tenho convicção de que a sensibilidade aguçada é parte primordial para sobriedade. Drogas e bebidas fazem as pessoas perderem seus sentidos, mas não quer dizer que a ausência dessas sustâncias faz uma pessoa sóbria, a falta de sensibilidade nos deixa incompletos, e pessoas incompletas não são sóbrias.

E o mais importante, você já parou pra pensar que a fé por ser um sentir, tem tudo a ver com sensibilidade, esse olhar rápido, pouco demorado para as circunstâncias, e para as pessoas nos faz muito exatos , muito lógicos, e perdemos muito paladar, muito olfato, muito tato, até uma audição melhor porque limitamos nossos sentidos.

Precisamos nos deixar ser mais surpreendidos pelo óbvio. Pelo óbvio do cheiro do café, da água do banho, do semblante de uma criança dormindo, ou do vovô dormindo, não se pode pegar, mas se sente, e cada um que coloque sua intensidade nesse sentir.

Que tal mais paciência, não só aquela de tolerar o outro, tolerar o momento difícil, mas a paciência definida como a ciência da paz, que é aquela que o silencio que fala, o olho fechado que mostra.

Aquele rapaz que corrigiu meu violão não via nada, mas a atenção no que estava ouvindo fez com que ele sentisse o que os outros não sentiram, o Mi desafinado. Somente 8% da nossa comunicação é verbal, os demais 92% é o que vemos, mas principalmente o que sentimos.

Definitivamente as coisas existem, e os seres humanos vivem, e viver é muito do se deixar sentir.

Você já deve ter ouvido, quando diante de algum momento difícil, alguém te disse: “Respira fundo” … E respirar fundo, é respirar sentindo. Então que tal: respirar mais fundo, ouvir mais fundo, enxergar mais fundo, enfim… sentir mais a fundo, com certeza também nessas outras experiências de profundidade, poderá perceber melhor seus momentos desafinados, mas também toda a harmonia linda que a vida te oferece.

Por Carlinhos Marques
Presidente Fundador da Comunidade Terapêutica Novo Sinai, que acolhe dependentes químicos desde 2005 de forma voluntária e gratuita, idealizador do projeto “Sobriedade Já”


Informações:

  • contato@novosinai.org.br
  • www.novosinai.org.br