Sequelas da pandemia

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Após cinco anos de pandemia, o que fica é o luto massivo que toda a população mundial viveu. (imagem divulgação)

 

Mesmo após meia década, os prejuízos psicológicos, causados pela pandemia do Covid-19, ainda são enfrentados pelas pessoas. A psicóloga Larissa Belucci revela questões relacionadas ao luto e como é possível viver apesar da dor

 

A psicóloga Larissa Belucci afirma, em entrevista, que o luto complicado pode desencadear prejuízos psicossociais, entre eles, depressão, ansiedade e até pensamentos suicidas. (foto Instagram pessoal)

@leidiane_vicente

 

 

 

@leidiane_vicente

No último dia 11, completou cinco anos desde que a OMS (Organização Mundial de
Saúde) declarou, naquele cinzento março de 2020, a Covid-19 uma pandemia.
O que a população mundial não sabia até aquele momento é que nada, nunca mais,
seria como antes. O desemprego aumentou de forma exponencial, o trabalho
presencial foi, quando possível, substituído pelo home office. Tudo o que não era
de extrema importância para a sobrevivência humana foi fechado
temporariamente.
Só era permitido sair de casa por motivos fundamentais e utilizando máscara,
tapando boca e nariz. As pessoas precisavam manter uma distância segura entre
elas para não haver risco de contaminação pelo coronavírus. Isso sem contar a
higienização das mãos, que fez eclodir o uso de álcool em gel, e a limpeza extrema
de roupas e sapatos ao retornar para casa, que ficavam ali mesmo na entrada ou
iam direto para o cômodo da lavanderia.
O caos foi instaurado, mas precisou ficar dentro das residências. Estas que
concentravam famílias que há algum tempo já não moravam mais juntas. Filhos
que viviam em outras cidades para estudar voltaram a morar com os pais, porque

as universidades, assim como todas as escolas, também foram fechadas. Isso sem
falar nas reduções de custos de vida.
Muitas pessoas ficaram sem salário para bancar os aluguéis de onde moravam e se
aglutinavam na casa de quem podia acolher.
Mas o medo era a palavra do momento. Medo da contaminação, da morte, de
perder alguém, ficar sem trabalho, de nunca mais voltar a respirar sem máscara
nas ruas, de não ter onde morar, dentre outros particulares de cada um.
Os noticiários e as redes sociais afloravam ainda mais esse sentimento. Números,
números e mais números crescentes, atualizados a cada hora, de casos de
infectados e mortes em todos os Estados brasileiros e no mundo. Totalizando,
foram milhões de óbitos de seres humanos contaminados pela doença.
Foi somente em cinco de maio de 2023 que a OMS anunciou o fim da ESPII
(Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional) referente à Covid-19.
Psicóloga há nove anos, a votuporanguense Larissa Martins Belucci, declara que,
mesmo após a pandemia, o cenário é de “danos econômicos, políticos, culturais e
sociais, todos esses afetam ainda hoje as condições psicológicas da nossa sociedade
como um todo”.
Nesta entrevista, ela fala sobre questões relacionadas ao luto, tanto individual
quanto massivo, durante o momento pandêmico e as consequências dele nos dias
atuais.
Diário de Votuporanga: O que é o luto? Existem fases diferentes para cada
pessoa?
Larissa Martins Belucci: O luto se trata de uma vivência comportamental
individual e, por isso, única, que pode envolver uma experiência intensa de dor e
sofrimento. Apesar disso, a dor é considerada um processo natural desta fase, onde
caberá a cada indivíduo lidar com adaptações a uma nova realidade de vida.
Inicialmente, o sofrimento é com a quebra da relação, ou melhor, do acesso aos
reforçadores que eram emitidos pela pessoa. Para exemplificar, imagine quando
temos um emprego, este nos permite acesso a uma rotina, pessoas, atenção e
remuneração, esses são os reforçadores que este ambiente de trabalho fornece.
Agora, pense no caso de um ente querido, do qual conversamos todos os dias,
encontramos, abraçamos, rimos juntos. O que ocorreria caso esses reforçadores,
tanto do trabalho, quanto da pessoa querida deixassem de existir? Vamos nos valer

do exemplo da perda abrupta de um familiar, as respostas emitidas anteriormente
deixam de ser reforçadas como antes, podemos emitir as mesmas respostas,
porém, não seremos mais reforçados, haverá uma extinção desses reforçadores. O
abraço deixará de existir, ao telefonar não será atendido. São essas alterações que
modificam os efeitos emocionais do indivíduo e pode causar a fase da revolta,
tristeza profunda, dores no peito, choro frequente, sentimento de vazio,
desinteresse por atividades rotineiras, alterações no sono e tantos outros
sintomas, que variam de pessoa para pessoa.

DV: O final da pandemia, no Brasil, acaba de completar cinco anos. Milhões de
pessoas morreram contaminadas pelo coronavírus em todo o mundo. De
forma direta ou indireta, o ser humano teve que lidar com o luto, seja de
alguém próximo ou algum tipo de luto coletivo. De que maneira essas
questões são encaradas pela psicologia?
Larissa Belucci: Sem sombra de dúvidas a pandemia nos trouxe o contato
inesperado e ainda de não reconhecimento do luto para esmagadora parte de nós
que a vivenciamos. Falar do luto da Covid-19 é reconhecer que todos fomos
afetados por ela. Foram diversas histórias de sofrimento que nos deparamos no
decorrer da pandemia. Histórias de muita luta, medo, tristeza, desespero, dor e,
também, de recuperação. Mas, não podemos deixar de falar sobre os lutos
inesperados, ou seja, o medo da possível morte que nos perseguia o tempo todo, e
o luto não reconhecido, aquele que muito ocorreu devido as situações abruptas
que tantas famílias passaram junto dos seus, não tendo a oportunidade de realizar
as cerimônias de despedida. O espaço de suporte social foi eximido para muitos
que vivenciaram a perda pela pandemia, ocasionando danos ainda inestimáveis
aos enlutados.

DV: Quais consequências o luto pode trazer para a vida psicológica das
pessoas?
Larissa Belucci: Complicações no processo do luto podem ocorrer devido a
fatores estressores devido a circunstancias da morte (violenta, traumática,
inesperada). O luto complicado pode ser um exemplo disso, ao desencadear

prejuízos psicossociais, entre eles, depressão, ansiedade e até pensamentos
suicidas.

DV: Na época da pandemia, não havia a possibilidade de um funeral
adequado. Existe alguma diferença para o enfrentamento do luto de uma
pessoa quando ela é acolhida, em seu sofrimento, pela família e amigos
durante um velório, por exemplo? De que maneira esse afeto é desenrolado
posteriormente?
Larissa Belucci: Infelizmente essa foi uma das variáveis que muito contribuíram
para a não elaboração desejada do luto na pandemia. Sabemos que a questão da
espiritualidade, inclusive aceita pela OMS, nos diz sobre a importância desse
momento “simbólico” de despedida. Viemos de muitas culturas ao redor de todo o
mundo, porém a maioria se utiliza de alguma cerimônia para honrar seus falecidos.
Os ritos nos ajudam de forma coletiva a lidar com esse rompimento.
Mas podemos falar sobre o acolhimento entre familiares, amigos e pessoas
próximas, que pode ocorrer de outras maneiras. Em acompanhamento
psicoterapêutico tive a oportunidade de trabalhar algo com um paciente.
Conversamos sobre a ideia da família se reunir, meses após a partida, pela Covid-
19, de um ente querido muito próximo, e construímos um momento no qual cada
um ali presente traria uma memória especial com a pessoa que havia falecido. Foi
uma ocasião muito valorosa, com suas especificidades, pois cada um sentiu como
poderia de acordo com seus recursos psicológicos. Em seu relato ele cita que o que
prevaleceu foi a sensação de “agora ficou a saudade, que já não dói como antes”.

DV: Quais as percas emocionais e psicológicas que uma pessoa tem quando
não pode contar com presenças de pessoas queridas e afetos físicos no
enfrentamento ao luto?
Larissa Belucci: O processo do luto com certeza se torna mais doloroso. Na nossa
cultura, o ritual das cerimonias de velórios e cremação nos oportuniza levar aos
enlutados o acolhimento no momento da morte, os auxiliando a dar um sentido ao
que aconteceu.

DV: De que maneira o ritual do funeral é relevante para as fases psicológicas
que o enlutado irá percorrer?
Larissa Belucci: Os rituais são considerados práticas de importante função na
contextualização do luto, pois oferecem um suporte para os enlutados como se
uma mensagem subliminar ocorresse de validação do sentir, vivenciar as emoções
que surgem com essa perda, além de oportunizar um momento de união e
acolhimento, que cumprem um papel essencial no reorganizar psicológico diante
das mudanças vivenciadas a partir de então.

DV: Quais os danos psicológicos que os anos pandêmicos causaram nas
pessoas e que podem ser evidenciados mesmo e, principalmente, após cinco
anos de “um novo normal”?
Larissa Belucci: Podemos identificar diversos danos econômicos, políticos,
culturais e sociais, todos esses afetam ainda hoje as condições psicológicas da
nossa sociedade como um todo. Mas nos atendo a saúde mental, a pandemia impôs
alterações na rotina de vida das pessoas, muitos se viram na condição de
mudanças de estilo de vida para sobreviverem. Houve uma parcela da população
que veio a se adaptar, porém, nem todos conseguiram desempenhar esse papel.
Diversas sequelas deixaram marcas intransponíveis para muitos, casos de
ansiedade e depressão tiveram um aumento significativo após a pandemia e, com
isso, a busca por tratamento também.

DV: Muito se falou nos noticiários sobre o número de mortos infectados pelo
coronavírus, que aumentavam de hora em hora. Que tipo de sentimento
essas informações podem causar nas pessoas e no que pode vir a prejudicá-
las em seus comportamentos psicossociais?
Larissa Belucci: Danos imprescindíveis, o consumo dos noticiários principalmente
pelos meios digitais tomou uma proporção gigantesca. O que pudemos observar na
prática clínica, foram pessoas apresentando quadros de crises de ansiedade e
sintomas de muito medo, que se generalizou tomando grande parte da vida das
pessoas. Sem sombra de dúvidas o medo esteve muito presente nas nossas vidas.
DV: É possível afirmar que a pandemia foi um trauma na vida de todas as
pessoas? Como você explica o trauma neste contexto?
Larissa Belucci: O trauma se trata de uma resposta emocional e ou corporal
causado por um evento estressor. A pandemia pode ser considerada em muitas
vidas um evento traumático, tendo desencadeado sentimento de impotência,
medo, insegurança e até imobilidade. A situação de trauma pode ser vivenciada de
diferentes maneiras devido a forma que cada pessoa lida ao atravessar o mesmo
tipo de evento. Pessoas que sofrem de vulnerabilidades materiais, emocionais e de
pouco recurso social tendem a ter uma experiência mais dificultosa referente ao
trauma.

DV: Para quem está enfrentando algum tipo de luto, seja pandêmico ou não.
Qual a seria o primeiro passo para não ser consumido pela dor?
Larissa Belucci: A busca por rede de apoio é um dos caminhos, diante de quadros
de sofrimento emocional é comum nos depararmos com o isolamento, a negação
pelo estado real psicológico o que apenas agrava a situação. Costumo dizer que
aceitar ajuda é o primeiro e mais importante passo, a tarefa de reconstrução é
complexa, mas fortalecedora para dar continuidade a vida, a vida