Bruno Arena
Hoje em dia é impensável que não nos cerquemos de contratos formais em todas as relações negociais importantes de nossas vidas. Um documento escrito, “preto no branco”, assinado por todas as partes, com duas testemunhas, com firma reconhecida em cartório, valerá mais do que aquilo que foi oralmente acertado entre os negociadores. Diz-se que contratos devem ser feitos principalmente entre amigos (compadres), pois o risco de se perder a amizade em qualquer problema que venha a surgir é muito grande.
Pior ainda, não é incomum que alguma das partes contratantes ajuíze uma ação buscando evitar aquilo que foi acertado em contrato. Uma colega advogada um dia me disse: “tenho ferramentas jurídicas para evitar o cumprimento de qualquer contrato”. Então chegamos neste ponto.
Em outros tempos não era assim: quem nunca ouviu histórias de pessoas mais idosas a lembrar com nostalgia os tempos do fio do bigode? Dizem que: “naqueles tempos sim se podia confiar na palavra”. O fio do bigode consistia em empenhar a própria palavra dando simbolicamente um fio do seu bigode em garantia. Parece-me que já na geração do meu avô a prática tenha começado a entrar em declínio, pois ele comprou uma fazenda no fio do bigode, não fez escritura pública e posteriormente veio a perdê-la por falta de registro.
O debate de fundo circula entre o jurídico e o ético, entre o Direito e a Moral, entre o contrato e a palavra. Alguns autores diferenciam a Ética da Moral, mas aqui as utilizaremos de maneira indistinta. Basicamente a Ética trata de qual é o bom proceder frente a determinadas situações da vida, ou seja, estuda o que pauta o comportamento humano.
O filósofo que modernamente melhor diferenciou a Moral do Direito foi Immanuel Kant e antes de expor sua teoria, vamos contar algo de interessante sobre sua vida. Ao contrário da imagem clichê que temos dos filósofos como pessoas distraídas e indisciplinadas, Kant morou a vida toda (1724 – 1804) na mesma cidade de Königsberg (Prússia) e se dizia que sua disciplina e pontualidade eram tamanhas que as pessoas da cidade poderiam acertar seus relógios quando Kant passasse para ir dar aulas na universidade. Depois de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), Kant foi o segundo monumento da filosofia moral do ocidente.
Voltando às diferenças, a principal delas é a autonomia da Moral e a heteronomia do Direito. Explico, tanto o Direito quanto a Moral possuem normas que pautam nossas ações, mas as normas do Direito são construídas por terceiras pessoas (por isso hetero-nomia), que são nossos representantes eleitos, ou mesmo não eleitos, mas que possuam uma posição dentro do Estado com a competência para criar normas.
Já a Moral se diz autônoma e carrega normas que nós mesmos nos impomos. Para cumpri-las, não precisamos de polícia ou de fiscalização. Se dou minha palavra e a cumpro, se marco um horário e não chego atrasado, são normas morais impostas a mim por mim mesmo. Neste âmbito está o fio do bigode e a justiça, naquele âmbito jurídico estão os contratos e todas as inúmeras leis.
É claro que, há normas morais que também são normas jurídicas, como a “não matar” e há normas jurídicas que não têm nada a ver com a moral, como a “proibido estacionar”.
Qual a consequência primeira dessa distinção? Que uma violação das normas jurídicas se resolve com fiscalização, punição e processos judiciais. A violação de uma norma moral, com peso na consciência, catarse e desaprovação pela sociedade.
Vou dar um exemplo de como, no Brasil, distinguimos muito mal esses conceitos. Diz-se que o brasileiro é um povo pacífico e “gente boa”, talvez porque não somos tão aguerridos para lutar por nossos direitos como os franceses, mas simultaneamente temos mais de 110 milhões de processos judiciais em tramitação no Poder Judiciário. Por esta estatística não parecemos pacíficos, mas que só não sabemos resolver nossos problemas por nós mesmos e acreditamos que o juiz saberá resolver melhor.
Respondendo à pergunta inicial, por que não existe mais o fio do bigode? Porque abrimos mão da construção da ética e da solução da maioria dos nossos problemas sociais pela via da Moral e passamos a acreditar que mais leis, mais fiscalização e mais processos judiciais são as nossas soluções. Não precisamos do melhor Código de Defesa do Consumidor do mundo, precisamos tratar bem o cliente; não precisamos ajuizar uma ação contra o vizinho que faz festas, precisamos diminuir o volume do som.
No contexto atual, parece que só há ética na criminalidade, pois se o crime perfeito é sem vestígios, não se espera que se assinem contratos para dividir o fruto do delito e que se assinem escrituras de imóveis fruto de corrupção. Para que funcione, estará em sua essência a confiança e a palavra. Aos outros, quanto menor a ética, a moral e a educação para a vida em sociedade, mais leis, fiscalizações e punições.
Bruno Arena – Mestrando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha). Advogado. Instagram: adv.brunoarena