Toda segunda-feira, às sete da manhã, atravesso o portão da escola como quem entra em um palco. Não há cortinas vermelhas nem aplausos. Há mochilas maiores que as costas, choros miúdos, sapatos piscando luz e uma pergunta que ecoa, sempre a mesma, vinda de fora dos muros: “Mas na educação infantil vocês só brincam, né?”
Por Alberto Martins Cesário, professor e escritor
Só.
Essa palavra pequena pesa toneladas.
Na sala do Infantil, brincar é verbo sério, é método, é ciência, é estratégia de sobrevivência, ali o brincar não é passatempo enquanto os adultos resolvem “coisas importantes”.
Brincar é o jeito que a criança pensa, investiga, organiza o mundo, um laboratório onde se testam hipóteses com massinha, se aprende matemática dividindo bolachas imaginárias, se descobre empatia quando o colega chora porque o castelo caiu. O problema é que esse trabalho não aparece em planilhas vistosas nem em vídeos de trinta segundos com trilha sonora animada.
O trabalho da educação infantil é como aquele truque de mágica bem feito, quanto melhor, menos se percebe o esforço. É fácil falar que na educação infantil só brinca quando ninguém vê o planejamento colado no caderno do professor, escrito à mão, entre uma reunião pedagógica e um café que esfriou ou quando não se vê a intencionalidade escondida no canto da sala, na escolha da história, na roda de conversa cuidadosamente pensada para ensinar a escutar o outro. Quem está de fora apenas vê a criança brincando e conclui-se, com a pressa típica do nosso tempo, não é nada demais.
Vivemos a era do “agora” onde as redes sociais transformaram tudo em espetáculo instantâneo e aprendizado, que é processo lento, virou concorrente desleal de vídeos que piscam, dançam e prometem felicidade em quinze segundos.
O professor da educação infantil disputa atenção com telas que não pedem silêncio, não exigem espera, não frustram, aliás, a frustração virou palavrão, e ensinar, especialmente na primeira infância, exige ensinar a lidar com ela.
Confesso que tem dias em que me sinto um artesão tentando vender cerâmica em uma de eletrônicos. Planejo uma sequência didática para desenvolver linguagem oral enquanto, do outro lado, o algoritmo oferece entretenimento infinito, é incrível ver as crianças chegando na escola sabendo deslizar o dedo na tela, mas não sabem esperar a vez de falar, a hora de ouvir e paciência para realizar uma atividade. E nós, professores, somos cobrados por milagres com materiais escassos, formação insuficiente e políticas públicas que parecem acreditar no mesmo mito que parte da sociedade, que a educação infantil é cuidado, não conhecimento.
Cuidar, claro, é essencial, mas, cuidar também é educar, ensinar limites, linguagem, convivência, pensamento crítico tudo isso antes dos seis anos, quando o cérebro está em ebulição criativa. O que falta não é boa vontade do professor, falta investimento, formação continuada que dialogue com esse novo mundo digital, políticas que enxerguem a primeira infância como prioridade real, não apenas discurso de campanha.
Há dias em que parece que estamos buscando soluções sozinhos, como náufragos pedagógicos construindo jangadas com cartolina, cola branca e esperança.
Ensinar conteúdos profundos em uma sociedade rasa exige resistência diária exige acreditar que vale a pena planejar quando tudo ao redor grita improviso e nos faz defender o invisível em um mundo que só valoriza o que dá like.
Mas, sempre há a “oposição” salvadora, existem as pequenas vitórias. Sabe aquele dia em que uma criança reconhece as vogais, percebem que letras formam palavras e que com as palavras podemos contar histórias, ou o momento em que ela aprende a esperar, a dividir, a argumentar. O simples fato do silêncio atento durante uma leitura, um abraço espontâneo depois de uma conquista.
Para muitos são migalhas, para esse professor são pepitas de ouro que renovam a fé e lembram que, apesar de tudo, a sala de aula ainda é território de esperança.
Educação infantil não é só brincar, ensinar na primeira infância é preparar o chão onde todas as aprendizagens futuras vão pisar, um trabalho sério, planejado, invisível e, justamente por isso, tão fácil de ser desvalorizado.
A pergunta que deixo, enquanto fecho este texto e preparo o próximo planejamento, é simples e incômoda… Que tipo de sociedade queremos formar se seguimos tratando a base da educação como algo menor?




