Vírus foi eliminado graças à ingestão, durante uma semana, do leite de doadora imunizada contra o SARS-CoV-2.
Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) recorreram a um método nada convencional para tratar a COVID-19 em uma paciente com uma doença genética rara que torna seu sistema imune incapaz de combater vírus e outros patógenos. Durante uma semana, ela foi orientada a ingerir 30 mililitros de leite materno – de uma doadora vacinada contra o SARS-CoV-2 – a cada três horas. Após esse período, o resultado do teste de RT-PCR – que há mais de 120 dias vinha indicando a presença do RNA viral – finalmente veio negativo.
O caso foi relatado em artigo publicado na revista Viruses. Os autores receberam apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) por meio de quatro projetos (16/00194-8, 18/14372-0, 18/14389-0 e 20/04558-0).
“Tenho acompanhado essa paciente desde criança e quando ela me contou que estava com COVID-19 eu fiquei muito apreensiva. O erro inato da imunidade que ela apresenta deixa seu sistema de defesa todo desregulado. Sua resposta inflamatória é deficitária, há poucas células se mobilizando para o local da inflamação e baixa produção de anticorpos. As características de virulência dos agentes infeciosos podem levar a dois desfechos nesses casos: infecção crônica ou morte”, conta a pediatra Maria Marluce dos Santos Vilela, professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM-Unicamp) e autora principal do artigo.
A pesquisadora explica que o sistema imune humano e dos demais mamíferos produz normalmente cinco tipos de anticorpos: as imunoglobulinas IgM, IgG, IgA, IgE e IgD. Portadores dessa doença – conhecida como síndrome de imunodesregulação – geralmente têm pouco IgE e, em alguns casos, ausência completa de IgA, o principal anticorpo neutralizante de vírus e outros patógenos, que costuma estar presente no leite materno, nas secreções respiratórias e gastrintestinais. Além disso, há uma produção muito baixa de IgG, normalmente o anticorpo mais abundante no sangue e responsável por reconhecer e neutralizar antígenos com os quais o organismo já teve contato prévio. Há apenas 157 casos do tipo descritos no mundo, caracterizados em estudo publicado no Journal of Allergy and Clinical Immunology, do qual Vilela é coautora.
“Nossa estratégia foi manter a paciente isolada em casa, sob os cuidados da mãe – que monitorou a oxigenação, temperatura corporal e a nutrição. No hospital ela poderia contrair uma infecção bacteriana, o que tornaria o quadro ainda mais grave. E desde o diagnóstico, em março de 2021, nós a acompanhamos periodicamente por vídeo”, conta a médica.
Nos primeiros 15 dias de infecção a paciente apresentou febre, perda de apetite e de peso, tosse e indisposição. Mas para surpresa e alívio de Vilela, o pulmão e demais sistemas mantiveram-se inalterados. Passados dois meses, o quadro permanecia o mesmo e o grupo então decidiu testar, em parceria com o Hemocentro da Unicamp, o tratamento com plasma de convalescente, ou seja, a transfusão de anticorpos produzidos por pessoas que haviam se curado da COVID-19, principalmente os do tipo IgG.
O procedimento foi feito e promoveu melhora dos sintomas e redução de marcadores inflamatórios no sangue. Mas, após 15 dias, o exame de RT-PCR permanecia positivo e a paciente seguia apresentando sintomas leves e sinais do que os médicos chamam de adinamia, que é uma grande fraqueza muscular associada a processos infecciosos prolongados.
“Ficamos receosos de que a infecção se prolongasse por muito tempo, o que a debilitaria ainda mais e aumentaria o risco de contaminar outras pessoas. Nessa mesma época, saíram os resultados de um estudo mostrando que mulheres lactantes imunizadas com a vacina da Pfizer produziam leite com uma quantidade razoável de IgA. Decidimos então fazer a experiência assistencial de reposição de IgA via leite materno”, conta Vilela.
A pesquisadora conta que só foi possível fazer o ensaio porque há no país uma legislação rígida que garante a segurança dos bancos de leite. Somente podem doar mulheres saudáveis, com testes negativos para doenças infecciosas como Aids, sífilis e hepatite, entre outras. E o sistema também permite saber se a doadora foi imunizada.
“Recomendamos a ela o consumo do leite por via oral, pois o IgA funciona como uma ‘vassoura’, ou seja, vai grudando nos patógenos ao longo de todo o trato gastrointestinal e tudo que é impróprio é eliminado nas fezes. O intervalo de três horas entre as doses – exceto no período noturno – foi pensado para não dar chance de o vírus continuar se replicando”, conta a pediatra.
O teste negativou após uma semana e outros dois exames, feitos com intervalos de dez dias cada, também não detectaram a presença do SARS-CoV-2. “E ainda seguimos fazendo testes de RT-PCR para SARS-CoV-2. Nossa preocupação é que, com as novas variantes, ela adquira uma infecção assintomática”, diz a médica.
Sempre o mesmo vírus
Segundo dados do artigo, a paciente permaneceu ao menos 124 dias com o vírus ativo em seu organismo. Para ter certeza de que se tratava do mesmo patógeno, e não de infecções sucessivas, os pesquisadores da Unicamp sequenciaram o genoma do SARS-CoV-2 isolado de três amostras coletadas em diferentes momentos para fins de diagnóstico. Em duas amostras também foi possível quantificar o número de partículas virais. Essa parte da investigação foi liderada pelo professor José Luiz Proença Módena, coordenador do Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve).
“Os resultados de sequenciamento demonstraram que a paciente foi infectada pela variante gama (P.1) do SARS-CoV-2, aquela que surgiu em Manaus no final de 2020 e causou um colapso no sistema de saúde por lá no início de 2021. Além disso, os dados mostraram que a paciente foi cronicamente infectada por esse mesmo vírus e não sucessivamente infectada por vírus diferentes, já que nenhuma mutação no genoma viral foi encontrada nas três reações de sequenciamento realizadas com amostras da paciente coletada em momentos diferentes”, relata Módena.
Na avaliação de Vilela, o ensaio só foi possível graças aos recursos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Foi a rede do SUS que permitiu o resgate das amostras para as análises genômicas. E, além disso, garantiu a segurança tanto do plasma de convalescente quanto do leite materno usado no tratamento. E como o controle de qualidade da rede é o mesmo em todo o país, eu pude instruir um colega do Acre a atender um paciente com uma imunodeficiência similar”, conta.
Módena ressaltou ainda a importância da “interação entre as áreas clínicas e básicas, por meio de uma pesquisa colaborativa, multidisciplinar e translacional, muito incentivada pela FAPESP”.
O artigo Clearance of Persistent SARS-CoV-2 RNA Detection in a NFκB-Deficient Patient in Association with the Ingestion of Human Breast Milk: A Case Report pode ser lido em: www.mdpi.com/1999-4915/14/5/1042.
*Com informações do Governo de SP