Alberto Martins Cesário, professor e escritor
Dizem que a sala de aula é um palco. Discordo. Palco tem holofote, aplauso, camarim e até um contrato de cachê. Uma sala de aula, na maioria das vezes, é mais parecida com aquele bar da esquina onde o cantor desafinado insiste em puxar um karaokê às três da tarde de uma quarta-feira, com uma plateia dispersa, metade conversando, metade olhando para o celular, e você ali, tentando convencer alguém de que a música, ou melhor, o conteúdo, ainda vale a pena.
Eu, professor há mais de uma década, já aprendi que ensinar literatura nesse mundo hiper digital é como vender guarda-chuva em dia de sol, ninguém quer, até que a tempestade chega. Mas sigo insistindo, porque acredito que cada verso, cada página, cada história lida com calma e ruminada no silêncio é um antídoto contra essa epidemia de superficialidade que nos consome.
Certa vez, abri a aula com uma poesia, antes que eu pudesse continuar, um aluno levantou a mão e disse: Professor, já vi isso no TikTok. Um cara recitou com uns efeitos e botou um som de fundo e ficou muito legal!
Fiquei em silêncio, engolindo seco, poesia remix! Respirei fundo, refleti sobre a situação e de repente, percebi que o problema não era a poesia estar no TikTok, mas era ver uma obra se tornar trilha de vídeo de dancinha e perder o sentido para o que ela foi escrita.
O impacto da tecnologia no interesse dos alunos é justamente esse, eles até conhecem os versos, mas raramente param para mastigar as palavras. A leitura deixou de ser banquete e virou fast food literário, um textinho de 15 segundos, pronto para ser consumido e esquecido na mesma velocidade.
Ser professor hoje é disputar a atenção com gatos tocando piano, com dublagens engraçadas e com threads no X (ex-Twitter) que resumem grandes obras em cinco emojis. É como tentar ler Machado de Assis em voz alta enquanto o vizinho do lado solta fogos de artifício às dez da manhã.
Não há momentos de reflexões, rodas de conversas e discussões sobre os livros literários, tudo se resume em dez minutos de You Tube e pronto.
E lá se vão horas de preparação, metodologias ativas, mapas mentais coloridos… substituídos por um youtuber com ring light e frases de efeito.
Enquanto isso, as políticas públicas parecem feitas por quem acha que aluno nasce sabendo lidar com algoritmo. Fala-se em “inclusão digital”, mas esquecem que inclusão sem reflexão é só mais um atalho para o abismo. Prepara-se laboratório de informática, mas não se prepara o professor para discutir fake news, para ensinar o aluno a desconfiar da fonte, a distinguir propaganda de conhecimento.
É como entregar o carro do ano a alguém que nunca tirou habilitação, bonito na foto, perigoso na prática.
E nós, professores, ficamos nesse entrelugar, tentando alfabetizar leitores críticos enquanto disputamos com a máquina de moer atenção que são as redes sociais, gritando contra o vento e às vezes, parece que falando em outra língua.
Já tive dias em que, ao propor a leitura de um conto, recebi aquele silêncio pesado da turma. Não o silêncio da atenção, mas o silêncio do tédio, o mesmo que se ouve quando a Netflix trava na metade do episódio.
Senti-me como um pregador do deserto, oferecendo água para quem insiste em beber areia. É algo impossível de explicar, chega a ser cruel quando você traz contos clássicos, autores maravilhosos, mas o aluno só quer saber se pode usar o ChatGPT para fazer a tarefa, o resumo, etc…
É uma sensação de estar gritando no vazio e isso dói na alma de um professor, porque sabemos que literatura não é luxo, é sobrevivência, afinal são nas palavras que a gente aprende a pensar, a resistir, a não aceitar respostas prontas.
Mas também há dias luminosos. Como aquele em que você descobre que aquela aluna que jurava odiar ler, te procura no final da aula só para dizer que leu o livro que você indicou e se emocionou tanto que pede para ficar mais uns dias com o livro. Ou o alecrim dourado, que sempre chegava atrasado, mas um dia apareceu com um caderno cheio de anotações da vida dele, inspirado no livro o “Diário de um Banana” que fazia parte das leituras diárias do professor em sala de aula, falando que um dia será um escritor famoso.
São momentos assim que nos salvam, pequenas vitórias, mas que brilham como vaga-lumes na escuridão, e cada vaga-lume desses é prova de que vale a pena insistir.
Ensinar literatura hoje é resistir ao imediatismo, ao consumo apressado de informação, ao vazio mascarado de meme e sobretudo, à ideia de que educação é só ferramenta para o mercado. Não, não é. Educação é aquilo que resta quando o mercado fecha as portas.
A sala de aula é espelho da sociedade caótica, barulhenta, fragmentada, mas também é espaço de poesia, de encontro, de pausa e talvez seja justamente isso que incomoda, ensinar a pausar, a olhar para dentro, a pensar devagar.
E eu, sigo escrevendo, sigo ensinando, sigo acreditando sabendo que é uma batalha desigual e cansativa. Mas sei também que cada leitor crítico que nasce na escola é uma semente plantada contra o deserto da superficialidade, e talvez seja isso que me move. Saber que a teimosia em acreditar que, mesmo no caos, ainda é possível formar leitores que não se contentam com respostas prontas, que querem mais, que sabem que o mundo cabe num poema.
Então eu pergunto a vocês…
Quando tudo pede pressa e esquecimento, seremos capazes de cultivar, na sala de aula e na vida, a paciência que a leitura exige?