A riqueza de polêmicas, debates e questões no entorno desta cinebiografia talvez nos renda mais de uma coluna de comentários. Desde a sua primeira exibição no Festival de Berlim em 2019, o filme passou por caminho tortuoso para ser lançado no Brasil. Finalmente, no dia 04 de novembro chegou às telonas brasileiras e já é o maior lançamento de filme nacional em tempos de pandemia.
Em Votuporanga, estreou no último sábado com sessão cheia e foi muito interessante ver o prestígio concedido à cultura e à história brasileira, independentemente do acordo ou desacordo com a figura de Carlos Marighella. Este filme marca a primeira atuação de Wagner Moura como diretor e traz Seu Jorge no papel principal.
Na segunda-feira passada, em entrevista no Roda-Viva da TV Cultura, o diretor trouxe alguns aspectos interessantes da sua peregrinação para a pré-estreia da película e defendeu o porquê de ter esperado 2 anos pelos trâmites burocráticos para lançá-la nos cinemas e não no streaming: as salas de cinema conferem um aspecto de reunião catártica em torno da produção cinematográfica. Como assim?
Desde a primeira exibição pública datada de 1895, em Paris, o cinema passou por várias fases, sendo uma delas a de atuação política muito forte, principalmente como instrumento da Revolução Russa na década de 20, da ascensão dos fascismos na década de 30 e da guerra de narrativas, que perdura até os dias atuais. É interessante ver que este aspecto de ritual não foi tomado pelo streaming, e é impossível que o seja, já que este carece da reunião pública como meio.
Interessante também analisarmos o impacto do filme no cenário político atual, que vai desde a interdição do debate, o boicote, as análises neutras, a liberdade de expressão até o fomento à reorganização da militância da dita esquerda em torno das pautas progressistas contemporâneas.
Para mim, o melhor questionamento sobre a ressignificação/absolvição de figuras históricas e controversas, como Marighella, está no livro “Crime e Castigo” do escritor russo Fiódor Dostoiévski, que comentaremos mais detidamente em outra ocasião. Por agora, basta sabermos que seu personagem principal, Raskolnikov, um jovem pobre e estudante de direito, se questiona se seria melhor para a sociedade se ele matasse uma agiota velha que vivia em sua vizinhança. Pergunta-se o porquê de Napoleão, apesar de ter espalhado terror na Europa, tendo sido responsável pela morte de milhões, é considerado ídolo, e ele, se matasse a velhota, seria considerado assassino. Mera definição política de narrativas. Marighella é revolucionário, herói, terrorista, assassino ou patriota? Seus atos não mudam, a (re) interpretação deles depende da história.
Retornando ao nosso filme em comentário, qual seria a diferença entre o investigador Lúcio (Bruno Gagliasso) e Marighella (Seu Jorge)? O filme mostra ambos matando e torturando, mas juridicamente, o primeiro está a serviço da lei militar vigente na década de 60, o segundo buscava alterar o Estado brasileiro para instituição do comunismo. Se a história brasileira tivesse sido diferente, talvez o filme de oposição hoje fosse intitulado “Investigador Lúcio” e não “Marighella”, sendo o primeiro torturado e morto na tentativa de instituição do regime militar e o segundo mataria pela manutenção do comunismo, como ocorreu em países socialistas.
O que buscamos mostrar aqui é que o mesmo ato, a depender de onde é praticado, se dentro ou fora do Estado, dentro ou fora da lei, poderá ser considerado crime ou não: é uma definição política; o direito só chega para legitimar ou não o que os arranjos políticos de poder decidiram.
Onde e em que tipo de situação esta batalha por narrativas sobre personagens é proibida? Na Alemanha; naquele país é proibida a negação do holocausto, sendo considerado crime querer rever este episódio histórico, a chamada: “negação de Auschwitz”. Consideram que não podem negar ou banalizar os atos de violência praticados pelos nazistas. Os campos de concentração até hoje continuam abertos à visitação, em um esforço para que a história não se repita. Infelizmente no Brasil não é assim e filmes como este, militantes ou não, muitas vezes sofrem para chegar às pessoas, resvalando em interdições e burocracias.
Para encerrar esta parte, nunca é demais lembrarmos da máxima de Voltaire sobre a liberdade de expressão: “não concordo com o que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres”.
Bruno Arena – Mestrando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha). Advogado. Instagram @adv.brunoarena. Embaixador Cultural da ACILBRAS. Contato (21) 98337-1838