Nísia Trindade Lima defende investimento em imunização mesmo sem garantia de resultado, mas ressalta que país deve rever atendimento à saúde pública.
Fiocruz entra em parceria com a Universidade de Oxford na tentativa de produzir vacinas contra a Covid-19
RIO — Otimista, mas cautelosa. A socióloga Nísia Trindade Lima comemora a futura produção de vacinas contra a Covid-19, que estão sendo desenvolvidas pela Universidade de Oxford, na Bio-Manguinhos, laboratório da Fiocruz, instituição presidida por ela. Trata-se de um investimento de R$ 693,4 milhões, e não há garantias de que o produto será eficaz. Nísia, porém, defende a parceria, destacando a importância da transferência de tecnologia, que pode contribuir até para o país superar outras enfermidades, como a gripe H1N1.
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Em entrevista ao jornal GLOBO do Rio de Janeiro, a presidente da Fiocruz indica a necessidade de investimento no sistema de saúde público e de organização das campanhas de vacinação. Convoca municípios, estados e governo federal a atuarem juntos no combate à Covid-19 e adverte que a população não deve esperar pelos milagres de uma vacina. Como os resultados dos ensaios clínicos não serão conhecidos antes de outubro, as medidas de proteção contra a pandemia, como a higienização e o uso de máscaras, não devem ser abandonadas.
O Ministério da Saúde vai produzir, na Bio-Manguinhos (laboratório da Fiocruz), até 100 milhões de doses de uma vacina contra a Covid-19 que ainda está sendo desenvolvida pela Universidade de Oxford. Trata-se de um investimento de R$ 693,4 milhões do governo, mesmo sem a certeza de sua eficácia. É um procedimento comum?
– Assumimos um risco de natureza econômica para ter a vacina no Brasil, um compromisso financeiro, esperando que o produto seja bem-sucedido, mas claro que ele pode não se provar eficaz. Há muitas pesquisas sem resposta sobre o coronavírus, e acredito que a escolha desta vacina foi muito bem pensada. Não somos o único país a tomar esta iniciativa. Outros também estão conciliando ensaios clínicos e produção de lotes sem ter certeza sobre o resultado final.
Por que estamos fazendo isso?
– Porque o país está sofrendo. Veja quantas vidas estamos perdendo no SUS devido à baixa capacidade de atendimento à população. Enfrentamos dois riscos. O primeiro é ter uma vacina que não demonstra grande capacidade de produção. O segundo é ver o Brasil excluído de qualquer busca pela produção de vacinas. Hoje, seguindo a fórmula como trabalhamos, não há qualquer ameaça clínica à população, porque as doses já serão introduzidas no SUS depois de terem
sua eficácia comprovada em pesquisas e exames da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
A Fiocruz terá capacidade para produzir vacinas para toda a população?
– Sim. Na verdade, mesmo agora, os insumos farmacêuticos virão de Oxford, mas a produção da vacina será finalizada aqui. Isso requer instalações adequadas e experiência, e a Fiocruz já fabrica vacinas há 120 anos. Podemos contar com o apoio dos pesquisadores de Oxford até chegar a 100 milhões de doses. Quando o processo de transferência de tecnologia for concluído, teremos autonomia para fabricar, a partir do ano que vem, 40 milhões de doses por mês.
Em testes com macacos, pesquisadores viram que a vacina protegia os animais da pneumonia, mas não eliminava o vírus nas mucosas. É possível corrigir esta e outras falhas?
– Isso deverá ser avaliado na fase 3, que é a última, das pesquisas. A Covid-19 tem uma série de perguntas sem respostas. Teremos uma comissão de especialistas acompanhando a produção das vacinas.
Uma eventual vacina eficaz contra o coronavírus pode ajudar o Brasil a se preparar para outras epidemias?
– Sim. Teremos tecnologia para combater uma série de doenças, especialmente os vírus respiratórios, entre eles o H1N1. Há muitas pesquisas que estão usando um vetor viral, como a que estamos trazendo agora, para combater doenças. A própria Universidade de Oxford está recorrendo a esse método para desenvolver vacinas contra o ebola e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers).
Há uma expectativa de ter os primeiros lotes da vacina disponíveis já em janeiro. A senhora teme que o otimismo faça o brasileiro relaxar nas medidas contra o coronavírus?
– Sim. Muitas vezes as pessoas não seguem orientações médicas por falta de consciência do problema ou por achar que a doença não afetará o seu grupo. Sabemos que a pandemia é um fenômeno multicausal, que tem efeito biológico, social e até de saúde mental. E, também, que parte da população precisa sair de casa atrás de seu ganha-pão. Mas ninguém pode contar com uma mágica. Há décadas as pessoas acreditam que doenças infecciosas são coisa do passado e que logo a ciência responderá com novos antibióticos. Na verdade, vemos que velhas enfermidades insistem em continuar entre nós, às vezes até emergem.
Na falta de um medicamento eficaz contra a Covid-19, qual a solução?
– São cuidados individuais e coletivos. Intensificar a higienização e usar máscaras. Temos na Fiocruz um laboratório dedicado a vírus respiratórios que acompanhará as possíveis mutações do Sars-CoV-2. Também é muito importante ter um sistema de vigilância em saúde e o SUS fortalecido, integrando a atenção primária à hospitalar, o que ajuda em diagnósticos.
O Brasil tem lacunas em campanhas de vacinação. No ano passado, perdemos o selo de erradicação do sarampo. Como o sistema de saúde terá que se organizar para imunizar contra a Covid-19?
– O programa de imunizações, a comunicação na área de saúde e as campanhas de vacinação devem ser olhados em conjunto. O coronavírus nos fez ver como é hora de fortalecer esse sistema. O SUS precisa ser financiado e valorizado e, para isso, estamos trabalhando com secretarias municipais e estaduais, além do próprio Ministério da Saúde. A pandemia é um problema de característica tripartite.
(O Globo – Renato Grandelle)