
O Dia Mundial da África, celebrado em 25 de maio, traz à tona questões que envolvem cultura, história, música, religião e educação. Em Votuporanga, o evento será hoje, a partir das 9h, na Concha Acústica, com vasta programação que dialoga diretamente com a cultura afro-brasileira

@leidiane_vicente
Ancestralidade, resistência, luta, sobrevivência, escravidão, segregação e racismo são algumas palavras que carregam histórias, tanto de glória quanto de sangue, e marcam a cultura das pessoas afrodescendentes.
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no continente americano, o Brasil foi o país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos XVI e meados do XIX, vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de um terço de todo comércio negreiro.
De lá para cá, memórias de violência foram deixadas nas peles escuras desses povos étnicos. E para isso não existe maneira mais reparatória que a de não consentir com o apagamento e esquecimento dessas cicatrizes.
O Dia Mundial da África, celebrado, anualmente, em 25 de maio, marca a criação da OUA (Organização da Unidade Africana) em 1963, na Etiópia, hoje, sucedida pela União Africana. Mais do que uma data comemorativa, o dia representa a resistência histórica, solidariedade entre os povos africanos e afirmação das identidades culturais do continente.
Um dia de celebração e compromisso
Artesã e educadora popular, atuando há mais de 40 anos em projetos voltados à valorização da cultura negra e da periferia, Fátima Barbosa, também conhecida como Fathi, é a idealizadora do Coletivo Casa da Mãe Joana e elucida sobre o tema:
“Para nós, enquanto povo preto, celebrar essa data é uma grande vitória. É mais do que uma comemoração, é uma afirmação da nossa existência, da nossa resistência e da nossa história”, diz ela.
Hoje (sábado), 24 de maio, a partir das 9h, na Concha Acústica, terá a 2ª edição do Dia da África. O evento é realizado pelo Coletivo Casa da Mãe Joana, em parceria com o Conselho Municipal de Políticas Culturais, o Programa Nacional dos Comitês de Cultura em São Paulo e o Ministério da Cultura. Conta ainda com o apoio da Prefeitura de Votuporanga, por meio das secretarias municipais da Cultura e Turismo e de Esportes e Lazer.
“Compartilhar a cultura preta com toda a população e ver o engajamento crescente é o que nos move a manter este evento vivo, ano após ano”, explica Fathi.
Para além da festa, informações necessárias também são previstas para a pauta, como o desconhecimento ignorante de que a África não é um país e sim continente. Apesar de frequentemente reduzido a imagens simplificadas, a realidade é muito mais ampla: são 54 países, mais de duas mil línguas faladas e uma riqueza cultural, religiosa e étnica incomparável. Da arte contemporânea nigeriana à música do Senegal, da literatura sul-africana à arquitetura etíope, a África é berço de múltiplas civilizações e movimentos inovadores.
“Acreditamos que o Dia da África também deve ser um momento de educação, de desconstrução de estigmas. Nosso objetivo é mostrar que existem diversas nações africanas, cada uma com sua riqueza cultural, histórica, artística e espiritual. Queremos combater a visão eurocentrada e, muitas vezes, negativa que ainda prevalece sobre o continente africano”, salienta a educadora e artesã sobre a questão.
Conforme ela, a iniciativa partiu da necessidade real e urgente de criar eventos que abracem pautas pretas, pensados por e para pessoas pretas. “Nós queremos ocupar os espaços públicos com as nossas vozes, com as nossas expressões e com as nossas narrativas”, completa.
Na grade de programações da celebração está previsto danças, músicas, oficinas, feira de artesanato, capoeira e atividades para todas as idades.
“A curadoria foi construída de forma coletiva, com o cuidado de trazer atrações que dialogam diretamente com a cultura negra e popular. A ideia é que cada detalhe reforce o protagonismo preto e celebre nossa ancestralidade”, detalha a idealizadora do coletivo.
Cultura e valorização da herança africana
O Dia Mundial da África é um convite à reflexão sobre a presença africana nas Américas, sobretudo no Brasil, país com a maior população negra fora do continente africano.
A data é oportunidade para resgatar histórias apagadas pela colonização e valorizar as contribuições africanas na cultura, na culinária, na religião, na música e em tantos outros campos.
“A cultura africana está em tudo no Brasil: na música, na culinária, na religiosidade, na linguagem, na arte, na oralidade, nos gestos e nas resistências do dia a dia. Infelizmente, essa presença ainda é pouco reconhecida ou respeitada por muitos. Valorizar a cultura africana é entender que o Brasil não seria o que é sem as contribuições dos povos africanos e seus descendentes”, enfatiza Fathi acerca da grande parcela de atributos da cultura brasileira que vem de raiz africana.

Ao ritmo de metal com hardcore, o Black Pantera, nasceu em 2014, em Uberaba (MG), e já se apresentou duas vezes no Rock in Rio, nas edições de 2022, no Palco Sunset e, em 2024, no Palco Supernova. O trio é formado por Rodrigo “Pancho” Augusto (bateria), ao lado dos irmãos Charles (guitarra e vocais) e Chaene da Gama (baixo e vocais). A banda é vista como um dos nomes mais relevantes do cenário brasileiro deste estilo musical. As letras das músicas são afiadas com posicionamento antirracista e antifascista.
“Falar do Dia Mundial da África é falar de uma luta extensiva. Em ‘Perpétuo’ que é a nossa faixa título, na primeira estrofe: ‘O continente mãe, todo o Atlântico assistia impiedosa travessia, um oceano inteiro de agonia’, se refere a esse terrível tráfico negreiro. A escravidão. Mas a gente também precisa desmontar isso e pensar na África como potência”, explica Chaene sobre questões concernentes às dores, mas acima de tudo, a força de resistência.
Ainda falando sobre música, de acordo com a artesã e educadora Fátima, muitos dos ritmos ouvidos hoje, como samba, maracatu, axé, funk, jazz e blues têm raízes nos tambores africanos.
“Os instrumentos tradicionais como o djembê, atabaque, berimbau e kalimba trazem consigo histórias, espiritualidade e força coletiva. A musicalidade africana é a base para grande parte da música que conhecemos atualmente no mundo todo”, destaca ela.
Apesar da constante miscigenação de raças e culturas vividas no momento presente, é um grande paradoxo que no Brasil ainda possua um gigante histórico de crimes racistas.
“É um reflexo direto do nosso processo de colonização e da falta de políticas públicas eficazes para reparação histórica. Somos maioria, mas seguimos invisibilizados em muitos espaços. O racismo estrutural está nas instituições, nas relações sociais, no cotidiano. Reconhecer isso é o primeiro passo para mudar. O paradoxo existe porque ainda vivemos em uma sociedade que lucra com a exclusão da população negra”, evidencia Fathi sobre a inabilidade de princípios que reflitam a multiplicidade do país.
Para o baixista Chaene, houve uma tentativa de sequestro e apagamento da cultura africana e o espelhamento disto é visto nos dias atuais.
“‘O que seria do mundo sem a Cultura Preta?’ O que seria do mundo sem a África? Quando a gente pensa em arte e música na história, apesar do que foi a escravidão e o que a diáspora significa. Vários povos foram construídos a partir do choque de culturas, raças e tudo mais”, refere ele a um outro trecho da música ‘Perpétuo’, fazendo alusão a tentativa de dispersão da cultura africana.
Religião e educação
Em uma tentativa de manutenção do exercício de poder do que é socialmente visto como hegemônico, a intolerância religiosa contra o Candomblé e a Umbanda é uma realidade grave no Brasil e reflete o preconceito histórico contra as religiões de matriz africana. Independente da Constituição garantir a liberdade religiosa, fiéis dessas religiões, frequentemente, sofrem violência simbólica, física, moral e institucional.
“Infelizmente, vivemos uma onda crescente de intolerância religiosa, alimentada por discursos que demonizam as religiões de matriz africana. Isso é racismo religioso. Religião não é competição entre o bem e o mal. Cada fé tem seu valor e merece respeito. As religiões afro-brasileiras são fontes de sabedoria ancestral, cura, amor e resistência. Criminalizar ou deslegitimar essas crenças é negar parte da nossa história e cultura”, analisa Fátima Barbosa atentando para a segregação e desqualificação de algo que está intrínseco ao próprio brasileiro.
Para que a negligência não vença, estudar, conhecer e reconhecer efetivamente a história e a cultura africanas são passos imprescindíveis para uma reparação válida, que irá progredir de geração para geração.
“A África é o continente mãe, é de onde brotou a vida. A ciência já falou várias vezes sobre isso. Então a gente está aqui para falar também que o Brasil é um reflexo do continente africano”, ilustra Chaene, que diz ter descoberto sobre suas origens e potência africana aos 30 anos.
Em direção as pessoas que estão dispostas a desvendar esse passado que atravessa o presente a todo instante, Fathi dá a dica:
“O primeiro passo é estar disposto a ouvir e aprender com quem vive essa cultura. Ler autores e autoras negras, assistir documentários, consumir arte preta, participar de eventos como o Dia da África, se permitir aprender com os saberes populares. É fundamental sair da lógica eurocêntrica e buscar fontes que tragam uma perspectiva preta, de dentro para fora”, orienta ela.
Sobre o Coletivo Casa da Mãe Joana, segundo seus integrantes
O Coletivo Casa da Mãe Joana nasceu da união de pessoas pretas, pardas e periféricas com o objetivo de fortalecer a comunidade negra por meio da arte, da cultura e do acolhimento.
Começamos em 2017 com o nome UBUNTU, como um espaço de escuta, debate e apoio mútuo. Ao longo do tempo, percebemos que esse espaço, inicialmente na casa da idealizadora Fathi, se tornou referência — tanto que as pessoas passaram a chamar de “a casa da mãe joana”.