A banalização do mal e as janelas quebradas paulistas

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Por vezes em rodas despretensiosas de amigos surgem analogias históricas e filosóficas para se tentar explicar certa letargia e incapacidade de indignação do nosso momento presente. Uma das lembranças é a da Revolução Constitucionalista de 1932, em que o estado de São Paulo se revoltou contra o governo provisório de Getúlio Vargas, sendo um dos motivos a nomeação de um interventor – espécie de governador delegado do poder central – que não era paulista: o tenente João Alberto Lins de Barros era chamado pejorativamente pelos paulistas de forasteiro, plebeu ou de pernambucano.

Esse bairrismo diminuiu e São Paulo elegeu um governador carioca, que pouco conhecia o estado antes da campanha, mas que veio também por indicação do poder central bolsonarista da época.

O bairrismo não causa mais indignação aos paulistas como na época Vargas, mas a mesma letargia não deveria estar acontecendo no assunto segurança pública de responsabilidade do estado.

A banalidade do mal é um conceito bastante conhecido e que foi criado pela filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt, que teve que fugir da Alemanha nazista e na década de 60 cobriu, como correspondente, o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, um dos implementadores e idealizadores da solução final judaica, que era o extermínio sistemático do povo judeu.

Eichmann foi colocado em uma jaula de vidro no tribunal, tamanho era o temor de sua pessoa, mas Arendt ao se deparar com aquele senhor resfriado que respondia às perguntas dos juízes, viu que não se passava de um burocrata, que simplesmente cumpria as regras, eficientemente, do sistema nazista. E se a ordem era fazer a melhor logística entre os campos de concentração, que assim fosse.

Enfrentando a comunidade judaica de sua convivência, Arendt não o retratou como um sanguinário nazista, mas como um burocrata que cumpria ordens. O problema estava na banalização do mal espraiada pela sociedade alemã em que se achava que isso era possível contra aquele povo.

Trazendo para a nossa sociedade paulista, esta semana, mais uma vez, tivemos notícias de abusos cometidos pela Polícia Militar, ao aplicar um “mata-leão” em um pipoqueiro no Tatuapé na cidade de São Paulo, por não ter apresentado licença de ambulante. É um claro absurdo.

Falas como a do governador Tarcísio – “não tô nem aí” – ao ser indagado que seria denunciado à ONU após as mortes ocorridas nas operações da polícia na baixada santista, vocalizam e encorajam a progressiva banalização da violência e do mal em nossa sociedade.

A preocupação com a capilarização dos abusos é também elucidada por uma outra passagem histórica: quando da assinatura no Ato Institucional 5 em 1968, que enrijeceu a ditadura militar iniciada em 64 no Brasil, o vice-presidente civil em exercício à época, Pedro Aleixo, disse o seguinte ao general que o procurou: “General, o que me preocupa não são os generais, mas os guardas da esquina”.

Aumentar o poder punitivo nas pontas, principalmente o da Polícia Militar, e achar que isso é uma solução para o medo crescente das pessoas frente à criminalidade atual é um erro teórico e já experimentado: primeiro – desde o século XVIII já se pontua –, porque o que garante uma queda na criminalidade é a certeza da punição e não a repressão ostensiva. A certeza da punição viria de uma boa polícia investigativa, o que no estado está a cargo da Polícia Civil, que vem sendo sucateada em detrimento da Polícia Militar, responsável pela parte ostensiva e que está à vista da população.

Segundo, uma das teorias criminológicas que se estuda é a da “Tolerância Zero”, que segue os fundamentos da teoria das janelas quebradas: por esta teoria, se um edifício tiver uma janela quebrada, ele será mais e mais vandalizado, por isso deve-se arrumar o mais rápido possível.

Levada para a teoria criminal, diz-se que a grande criminalidade diminui ao se combater cada pequeno delito com tolerância zero.

Ocorre que, em uma sociedade que se tem um mínimo de liberdade, crimes ocorrerão, sendo impossível zerá-los e buscar este objetivo só espalhará a criminalidade para onde não se chega a repressão e o único criminoso, ao final das contas, será o próprio estado, que terá que ser mais violento.

Celebrar a truculência enquanto ela não está perto de nós é uma ingenuidade, pois o poder punitivo exacerbado e fortalecido não escolhe alvo, embora comece pela ponta mais fraca, como no caso do pipoqueiro, ao mesmo tempo em que se busca anistiar os que quebraram os três poderes no dia 08 de janeiro. Haverá sempre os protegidos politicamente.

Por isso deve ser controlado e nunca é demais lembrar do poema de Niemöller: “Quando os nazis vieram buscar os comunistas / guardei silêncio porque eu não era comunista; Quando encarceraram os social-democratas / guardei silêncio porque eu não era social-democrata; Quando vieram buscar os sindicalistas / não protestei, porque não era sindicalista; Quando vieram buscar os judeus / não pronunciei palavra, porque não era judeu; Quando vieram finalmente buscar a mim / não havia ninguém mais que pudesse protestar”. Não celebremos abusos.

*Bruno Arena: Mestre em Direito Penal e Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Presidente do Rotary Club Votuporanga 2022/23. Vice-Presidente da ACILBRAS. Proprietário do Cine Votuporanga.  Autor e tradutor de livros. Advogado. Político. Instagram @adv.brunoarena.