Todo poder emana do povo. A democracia direta

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O título é texto da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB 1988), que já em seu primeiro artigo traz os princípios fundamentais do Estado brasileiro. No parágrafo único se lê: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Bruno Arena – Foto: Reprodução

Até a primeira vírgula do artigo, o excerto tem estampado muitos cartazes em manifestações de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, na tentativa de fundamentar que a vontade do povo, que está em manifesto, deve prevalecer ao pedir voto impresso, extinção do Supremo Tribunal Federal, intervenção militar e até mesmo uma nova Constituição Federal.

No entanto, os cartazes pararam na vírgula, esquecendo a forma que o poder se exerce “por meio de representantes eleitos” ou até mesmo “diretamente, nos termos desta Constituição”.

Ou seja, nossa democracia, e de todo o mundo democrático, é representativa e indireta por meio de representantes eleitos e só é direta nos casos e termos da Constituição, que no seu artigo 14 estabelece que a soberania popular será exercida diretamente nos casos clássicos de plebiscito, referendo e iniciativa popular de lei.

Esses mecanismos de democracia direta, diferentemente de países como a Suíça, não são muito comuns em nosso país e são convocados em situações em que nossos representantes preferem que o povo diretamente decida para eles ou que referende alguma decisão já tomada.

O plebiscito acontece antes mesmo da criação da norma jurídica e o caso mais famoso foi o ocorrido em 7 de setembro de 1993, ocasião em que poderíamos ter optado, em vez da República, pela monarquia constitucional e em vez do presidencialismo, pelo parlamentarismo.

Sim, a nossa Constituição Federal deu a possibilidade de escolhermos uma forma e sistema de governo igual ao do Reino Unido, uma monarquia parlamentar, porém optamos pela República presidencialista.

No referendo, a norma já está feita e o povo é apenas consultado para que os representantes afiram se acertaram ou não na decisão. O caso recente mais emblemático foi o do art. 35 do Estatuto do Desarmamento, ocorrido em 23 de outubro de 2005, que não concordou com a proibição do comércio de armas no Brasil, porém era apenas um referendo.

A democracia direta nunca existiu, mas didático e historicamente se citam as Ágoras atenienses como espaços de esfera pública em que os cidadãos decidiam os rumos da cidade. Porém, à época, apenas homens com posses eram considerados cidadãos, excluindo escravos, mulheres, estrangeiros e pobres. A democracia não era reprensentativa, mas sim direta para cerca de um terço da população.

Mas poderíamos fazer o seguinte questionamento: mesmo com informações instantâneas a nível global, precisamos ainda ser representados em parlamentos, sindicatos, fóruns globais e governos, que muitas vezes decidem algo que a maioria da população parece discordar? Não seria possível uma “ágora digital global”, em que pudéssemos votar com nosso celular as normas que vão nos reger?

O filósofo francês Pierre Levy criou o conceito de ciberdemocracia, onde haveria relações mais diretas entre Estado e indivíduos mediadas pela tecnologia da informação.

Já o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu ensaio “Infocracia: digitalização e a crise da democracia”, traz de maneira muito crítica esta possibilidade. Diz que os eleitores inconscientemente ficam expostos a fake news, canais privados criando as próprias informações, dark ads, twitters e algoritmos inteligentes, fragmentando a esfera pública e criando “gados eleitorais” incapazes do discurso e da auto-observação da sociedade, que é um pressuposto da democracia.

Mas algo é muito intrigante nesta história toda, e é um dos primeiros questionamentos trazidos pelo filósofo italiano Antônio Negri em seu livro “O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade”. Ora, se a soberania e poder emanam do povo, que através do chamado poder constituinte originário pode criar uma Lei Fundamental (Constituição), que define tudo em um Estado – sistema de governo, forma de governo, direitos fundamentais, como será a democracia, etc. – por quê esta potência tão grande tem que desaparecer após promulgada a Constituição? No Brasil chega ao ponto de uma emenda à Constituição não poder ter iniciativa popular.

As discussões são complexas, porém necessárias. O que parece urgente é que o sistema democrático tenha que provar que ainda é o melhor disponível, para que não continuemos tendo, em tempos de populismo, “O Povo contra a democracia”, como diz o cientista político norte-americano Yascha Mounk.

Bruno Arena: Mestre em Direito Penal e Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Especialista em direito penal e direito eleitoral. Presidente do Rotary Club Votuporanga 2022/23. Vice-Presidente da ACILBRAS. Membro do Observatório da Democracia. Proprietário do Cine Votuporanga. Autor e tradutor de livros. Advogado. Instagram @adv.brunoarena.