
Amanhã, 13 de julho, é Dia Mundial do Rock. Data que celebra o estilo musical e as diferentes maneiras de vivê-lo. Em Votuporanga, os festivais de música dos anos 2000 deixaram um legado que ainda ecoa. Thiago Marchan (Cabelo) revisita esse tempo em que a cena local ganhava força mesmo sem o apoio da internet, sustentada apenas pela paixão, amizade e atitude para fazer acontecer




@caroline_leidiane
Em um mundo de jovens hiperconectados, onde playlists são formadas por algoritmos e a música está a um clique de distância, é difícil imaginar um tempo em que se esperava ansiosamente para copiar uma fita K7 com aquele som novo que um amigo havia descoberto. Mais confuso ainda é explicar para a nova geração o que era se reunir para montar um festival inteiro de rock sem redes sociais, sem internet banda larga e com divulgação feita na base da xerox.
Contudo, foi nesse cenário que muitos adolescentes votuporanguenses encontraram identidade, pertencimento, amizades e propósito. Foi também em tempos, não tão remotos assim, entre guitarras compartilhadas e sons distorcidos, que o inspetor de riscos Thiago Lúcio Marchan, também conhecido como Cabelo, viveu intensamente a formação de uma cena cultural que moldou uma geração.
Hoje com 41 anos, mas desfrutando de uma memória que pulsa como se tudo tivesse acontecido ontem, Thiago lembra que o cenário musical dos anos 2000 era, na verdade, um desdobramento direto do que havia sido iniciado na década de 1990.
“A cena nos anos 2000 era um resquício da década de 1990, mais precisamente de 1992 a 1995, onde os festivais aconteciam em escolas como o Rock Lobo, no Dr. José Manoel Lobo, o dia do Fico, no Colégio Objetivo, e o festival Rock na Rua que, décadas depois, seria relançado como Rock On Street, tendo como idealizadores Alexandre Lobão e Endrigo juntamente com alguns integrantes de bandas e auxílio da Secretaria de Cultura de Votuporanga”, relembra ele o início de uma Era rock and roll no município.
Mas antes de qualquer palco, o que existia era vontade. Thiago teve seu primeiro contato com o cenário local graças ao primo e seus amigos, que já tocavam nesses festivais escolares. Ele recorda com clareza um momento comum daqueles tempos de escassez.
“Me lembro que na época deles, os instrumentos eram compartilhados. A mesma guitarra, baixo e batera para todos nos eventos. Instrumentos elétricos eram raros”, diz.
Mas essa questão nunca foi um obstáculo. A atitude dos adolescentes estava na veia e o que eles queriam era tocar e descolar um ambiente onde pudessem ensaiar sem que isso terminasse em confusões para as bandas de garagem.
“Nós fomos atrás de lugar para ensaio aberto para bandas que não tinhas local para ensaiar, pois vizinhos na época não nos viam com bons olhos e talvez nem bons ouvidos. A ideia era um local coletivo para todos que não tinham um lugar adequado, nem pensávamos em organizar eventos ainda”, lembra Cabelo aos risos.
Essa improvisação era a alma do movimento. Os primeiros festivais eram montados com esforço conjunto, peças emprestadas, erros na regulagem do som e uma dose generosa de coragem.
“Os eventos, no começo, eram uma mistura de improviso com aluguel de aparelhagem de pessoas que nunca tinham mexido com bandas, regulagem de timbres e alturas dos instrumentos. Além de juntar algumas coisas das bandas como bateria e cubos de guitarras e baixo. Todos aprendendo na prática e na vontade de fazer acontecer”, conta Thiago sobre os primeiros capítulos.
Era tudo feito conforme o DIY (“Do It Yourself” em tradução “Faça Você Mesmo”), inclusive os cartazes, desenhados à mão e xerocados para serem colados pela cidade ao estilo lambe-lambe.
“No começo até os cartazes eram desenvolvidos por nós. Desenhando, xerocando e colando para a divulgação. Nem imaginávamos que podíamos pedir patrocínio no comércio para ajudar nos custos, isso foi acontecer muitos festivais depois com o aumento do público e a necessidade de espaços maiores”, narra ele.
Esse comportamento movido pela paixão e desejo de existir se desdobrou na efervescência de bandas. Formadas por jovens a procura de um lugar para experimentar a sua vez de fazer rock, o grito aconteceu.
“As bandas mais comuns da época eram Stark-Mad, Marrones, Barata Suicida, Flipper, Armagedom, entre outras. Com o movimento criado, bandas de fora foram adentrando como Terror Cult, de Fernandópolis, Caverna Style, de Nhandeara, Narcolepsia e Fimose, de Macaubal”, rememora Thiago com entusiasmo e prazer de ter tocado, geralmente como guitarrista, em várias dessas bandas. Entre elas Marrones, Caverna, Armagedom e Flipper, além de ter idealizado projetos marcantes como Barata Suicida, Tosse Seca e CORJA.
Organizar um festival sem internet exigia encontros pessoais, muito papel e incansável paciência. A centralização dos afazeres acontecia na base da confiança da palavra.
“Era realmente um desafio prazeroso, pois o contato era pessoal, horário e locais pré-combinados para juntarmos o máximo de pessoas para a distribuição das funções, busca de patrocinadores, locais e bandas a serem chamadas”, lembra Thiago os esquemas da época.
Com o tempo, novas bandas surgiram, como Amnésia, Sirro-Z, Blue Blood e o movimento ganhou maturidade, mesmo que mantivesse o espírito de resistência.
“Sou suspeito para falar daquela época, pois meu saudosismo me traz ótimas lembranças, amigos que conheci e carrego até hoje. Até mesmo minha esposa, nos conhecemos ali naquele movimento, naquela explosão de juventude e atitude”, admite ele.
Para Cabelo, aquele momento não se tratava apenas de uma juventude barulhenta,
era sobre música, identidade, transformação e, principalmente, inspiração.
“É inegável que muitas pessoas que hoje tocam, desenvolveram o prazer e a admiração por música ali, naquela época. Eles viam que era possível fazer aquilo também: tipo subir num palco e mostrar em covers e músicas autorais sua ideologia, suas personalidades”, reflete o guitarrista.
Ao olhar para traz, há muitos motivos a serem comemorados. Segundo ele, o rock não era apenas trilha sonora, mas uma ferramenta de formação pessoal e social. Em meio às distorções e letras intensas, muitos jovens encontraram espaço para irradiar sobre o mundo ao redor, questionar padrões e construir valores.
“O rock, seja ele qual for, te faz ter uma opinião sobre certos assuntos, se posicionar e até mesmo querer mudar o que for necessário para que todos tenhamos um mundo melhor”, afirma, reconhecendo o poder transformador que aquele movimento teve em sua geração.
De acordo com ele, o que movia os festivais ia muito além da música. A união entre os jovens também acontecia por meio da arte, de oficinas artesanais, fanzines, grafite e skate. O rock foi o elo, mas o que se formou foi um movimento amplo e plural, onde cada tribo se sentia parte de algo maior. Ali não havia barreiras, só pontes.
Hoje, mesmo com a facilidade de acesso às músicas pela internet, Thiago ainda mantém o hábito de explorar coisas novas. Apesar de o tempo ter passado, ele segue envolvido com música. Seu projeto mais recente foi a banda T.R.E.S, voltada ao circuito de bares. Também tem orgulho de manter os royalties da CORJA, banda autoral de hardcore com dois EPs lançados: CORJA e Extremo Noroeste Paulista, este último uma ode à identidade regional da cena.
“Ainda garimpo coisas novas. Adoro clássicos, mas até mesmo nos dias de hoje com tantas bandas e tão fácil acesso nelas eu tento aproveitar e me favorecer disso, pois sou da época que levávamos fitas K7 na casa do amigo que tinha algo novo, justamente para copiarmos”, evoca ele tempos onde o compartilhar tinha sentidos analógicos.
Ao tentar traduzir o que o movimento representou, Thiago vai além das notas musicais e da estética rebelde do rock and roll. Como ele diz, tudo aquilo simbolizava acolhimento, identidade e união, uma espécie de porto seguro para os jovens que, muitas vezes, não se encaixavam nos padrões impostos pela sociedade.
“O rock significa família, com seus problemas, parentes e situações adversas, mas sempre confiável e unida”, resume, revelando que, mais do que um estilo musical, o rock foi, e ainda é, uma comunidade onde ele se sente pertencente.
Talvez seja esse o maior legado da cena rock de Votuporanga nos anos 2000: ensinar uma geração a encontrar na coletividade o caminho para a criação, desenvolvimento pessoal, talento e personalidade. E mostrar potentemente que não era preciso muito para fazer história. Bastava atitude, amizade e uma guitarra compartilhada. Memórias que o tempo jamais apagará, porque esse som é para aumentar o volume.