Quando a escola fala e ninguém escuta.

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Por Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Em tempos de respostas instantâneas, vídeos de 15 segundos e opiniões embaladas para consumo imediato, ensinar uma criança a realmente ouvir virou tarefa tão rara quanto achar um apagador que funcione. Na linha de frente desse confronto, o professor luta para manter viva a escuta ativa, fundamento da leitura e da convivência.

Se eu pudesse montar um museu das coisas raras da escola contemporânea, lá no fundo entre o giz que não quebra no meio, o apagador que realmente apaga e a caneta do professor que ninguém toma emprestada “só um minutinho”, eu colocaria, numa redoma de vidro, a escuta ativa. Assim mesmo, com placa dourada e tudo, objeto frágil por favor não tocar, nem aproximar celulares.

Porque, convenhamos, o que chamam por aí de escuta ativa virou quase uma lenda urbana. Para alguns, significa balançar a cabeça enquanto o outro fala, mesmo que o cérebro esteja do outro lado da rua pensando no pastel da cantina, para outros, é fingir atenção enquanto se prepara a resposta mais rápida, curta e certeira e de preferência um meme e para uma parcela significativa da humanidade, ouvir é só aguardar a fala do colega terminar para, enfim, usar a própria voz como se fosse a última chance de aparecer no BBB da vida real.

Pois é, mas é tudo mito, primeiro, escutar não é “ficar quieto”, segundo escutar não é “esperar sua vez de falar” e terceiro escutar não é “dar uma olhadinha rápida no celular porque não vai atrapalhar ninguém”.

Vai sim, atrapalha e muito!

Outro dia, na minha sala do 5º ano, pedi que guardassem tudo o que pudesse tirar a atenção, pois nos preparávamos para uma atividade importante. Um aluno me respondeu, com a sinceridade dos que ainda não aprenderam a mentir com elegância, “prof, hoje eu vim com meu celular, porque lá encontro orientações em 15 segundos e sua explicação demora mais, posso usar?”

Respirei fundo, contei mentalmente até dez, tentei manter a calma e respondi que conhecimento não tem “versão reduzida”. Ele me olhou como quem observa um dinossauro tentando usar Wi-Fi.

E eu entendi a metáfora, vivemos o tempo da velocidade, onde todo mundo responde antes de pensar, compartilha antes de ler e “ouve” antes de ouvir. A sala de aula virou um “ring” entre a reflexão e o imediatismo, e adivinhe quem está perdendo?

Nós, professores, ficamos ali no meio, tentando disputar espaço com memes, threads, vídeos explicativos com música de fundo e a onipotência da busca do Google, que responde em um segundo aquilo que eu levo 20 minutos para construir com cuidado.

E não é só uma competição injusta é uma competição desleal. Porque enquanto eu tento ensinar a importância de escutar para compreender, as telas ensinam a pular para a parte que interessa.

E no meio desse furacão tecnológico, seguimos sem políticas públicas que preparem o professor para lidar com essa nova fauna digital. Não há formação continuada suficiente para enfrentar a desinformação que escorre pelas mãos pequenas do Fundamental 1.

Não nos ensinaram a ser guardiões da atenção humana, não estava escrito no edital do concurso que eu teria que ser capaz de ensinar leitura crítica numa sociedade que lê manchetes como se fossem capítulos inteiros.

Ensinar escuta ativa nesse cenário é como plantar roseiras em terreno arenoso, tentamos, persistimos e voltamos no dia seguinte com o regador na mão, porque a leitura, a verdadeira, aquela que mergulha, que respira, que se molha, só nasce em solo fértil de silêncio, curiosidade e convivência. E silêncio, meus amigos, hoje vale mais que ouro na bolsa de valores educacional.

Há dias em que me sinto carregando sozinho o piano da profundidade numa sociedade que só quer dançar ao som das notificações isso é muito solitário e exaustivo. Digo que é uma proeza quase heroica, embora ninguém nos dê capa ou feriado.

Mas também há aqueles pequenos milagres que nos salvam do cinismo completo.

Como quando uma aluna, que nunca presta atenção em nada, chega em você e diz que hoje ela ouviu de verdade a aula e compreendeu o conteúdo todo, ou quando a turma, inteira, decidiu que queria montar um “clube das histórias”, para aprender a conversar e discutir sobre uma coleção que tem na biblioteca. Não durou mais que três encontros, é verdade…, mas foram três encontros de conversa com propósito.

Esses momentos são pequenos, quase invisíveis, mas quem é professor sabe que são eles que nos renovam e diz baixinho, continua.

Isso nos lembram que a escola ainda é um espaço possível de resistência, onde a arte de ouvir não morreu só está precisando de reanimação cardíaca.

No fim do ano letivo, quando o cansaço já se confunde com o calendário, percebo que ensinar escuta ativa é ensinar convivência, leitura e, no fundo, humanidade, quase um ato político desses que não cabem em discurso, mas cabem no gesto simples de abaixar à altura de uma criança e perguntar o que realmente ela tenta nos dizer, e talvez a verdadeira educação comece exatamente aí, quando a palavra do outro ganha espaço dentro de nós.

E então, querido leitor, em um mundo que fala cada vez mais alto, quem é que ainda está disposto a realmente ouvir?