(Obra de Ficção) Aquela Noite Ainda Era Aquele Dia

1049

Por Antoninho Rapassi

Sempre gostei de carros grandes para as minhas costumeiras viagens de recreio. Além de grande o carro era carregado com toda a parafernália necessária para o veraneio adrede programado. Fazia parte das minhas esquisitices, passar por uma horta e comprar vários maços de hortelã, para ir respirando aquele perfume de clorofila durante a viagem. A lataria, os pneus e as partes cromadas do carro já haviam recebido polimento e o tanque de combustível estava abastecido para rodar uns 350 quilômetros. A parte mecânica, sempre merecedora de atenções era revisada até com exageros. De forma que, o meu Landau 1980, preto, brilhava aos olhos de todo mundo. E eu, lá dentro, orgulhoso e feliz ia sempre à procura de aventuras sob os acordes melodiosos, ora de George Melachrino, ora de Billy Waughn e de tantos outros grandes nomes de músicos que conseguem traduzir os nossos sentimentos e espiritualidades. Em minha companhia, sempre a presença inefável de Virgínia, portadora da aliança de ouro no dedo anular da mão esquerda há duas décadas. Sua presença era um estímulo à alegria e às cumplicidades criadas pelas inspirações de nossas almas gêmeas. Quando a vi pela primeira vez, o que chamou a atenção além de intrigar-me, foi uma corrente no pescoço que prendia seus óculos. Não gostei da corrente, mas gostei da moça de braços ebúrneos. Por ter acontecido em uma sala de aula, tive o prazer de me aproximar e desempenhar um romance que eu mesmo redigi e interpretei o papel do conquistador. Resultado, ela se tornou minha namorada, minha noiva e minha mulher, tudo num espaço romântico de três anos. O que nos unia eram os mesmos gostos por comidas, por bebidas, contemplação de paisagens, convicções políticas e uma envolvente atração pessoal. Sabíamos cuidar de nós mesmos para garantir e prolongar os prazeres das atrações recíprocas. O amor, fazíamos até por telepatia.

A minha profissão de Diretor Comercial de uma indústria da construção civil, obrigava-me a viajar periodicamente, enquanto que a profissão dela era a advocacia tributária numa empresa sediada na capital paulista. Longe dela nestas ocasiões das viagens periódicas, quando a saudade batia eu apanhava pra valer. Ao telefone no final do dia, dizia para a Virgínia aquela frase repetida por Adão para Eva: “Você é a única mulher da minha vida.”

Não tínhamos filho, mas a compensação ficava por conta dos dois labradores caramelos que nos divertiam à beça. Ao sairmos em viagens, os dois eram levados para um hotel e tudo ficava bem para nós quatro.

Como a nossa vontade de viajar nunca foi passageira, havia uma mala sempre arrumada com os produtos básicos, em duplicata, para o conforto de cada um e assim íamos tocando a vida em perfeita união de corpos e comunhão de pensamentos.

O dia amanhecera com um céu azul sem nuvens a indicar calor e brisas suaves pela frente. Estávamos ainda rodando em solo paulista e vimos um outdoor anunciando a proximidade um Resort, oferecendo uma programação atraente com promoções tentadoras que já estavam acontecendo. Tudo se relacionava com um festival da culinária portuguesa e aí me explodi de felicidade com a frase mais bipolar do mundo, dizendo: “minha nossa!”

A recepcionista bonita, sorridente e elegante nos entregou impressos para serem preenchidos e logo fomos conduzidos para um amplo apartamento climatizado. A banheira Jacuzzi nos surpreendeu e suscitou de imediato, entre sorrisos, a ideia do que fazer logo mais a noite. Seria a noite das espumas…

Sendo já a hora do almoço, que imaginamos ser demorado e litúrgico, mal demos um passar de olhos na farta geladeira e fomos para o salão das refeições.  No ar, exalava o estimulante perfume da simbiose harmônica dos temperos. Quem fosse bom das membranas pituitárias poderia sentir os lombos de bacalhau azeitados e na companhia saudável das cebolas, do purê de batatas, do alho frito e porque não celebrar a fragrância da santidade que abunda nos vinhos tintos? Apressamo-nos por sentar logo neste salão odorífero.

Rapidamente iniciou-se o desfile das gentilezas comandado por um batalhão de garçons uniformizados. Eu e Virginia, ante a expectativa de que iríamos ser servidos por tantas comidas portuguesas e de vinho lusitano, mal conseguíamos disfarçar a incontida alegria. Sem dizer que, ao final desta pantagruélica batalha haveríamos de conferir medalhas e prêmios às sobremesas conventuais que só Portugal sabe fazer, porque faz há “saecula, saeculorum”. Duas horas foi o tempo em que mergulhamos neste oceano de prazeres gastronômicos, estimulados por duas garrafas do generoso vinho tinto do alto Douro. Quando nos serviram os pastéis de nata e os ovos moles de Aveiro, dispensamos o café, agradecemos e, trôpegos, buscamos o caminho da alcova fofa e macia, que iria nos restaurar.

Devo ter dormido umas quatro horas, pois ao acordar com disposição para iniciar um novo dia de atividades, foi a Virgínia quem me convenceu que “aquela noite ainda era aquele dia, pois a banheira não tinha sido palco do que os nossos olhos havia, telepaticamente, combinado para encenarmos as coreografias sob as espumas”.

12 de março de 2024

 

_____________________________________________________________________________