O cansaço do educador diante da superficialidade digital

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Por Alberto Martins Cesário, professor e escritor

Era uma terça-feira comum. Ou pelo menos deveria ser. O céu ainda bocejava um cinza preguiçoso enquanto eu cruzava o portão da escola com minha mochila de livros, papéis corrigidos e esperanças um pouco amassadas. A inspetora me saudou com um “bom dia” arrastado e eu respondi com aquele sorriso automático que os professores aprendem a forjar no segundo semestre, depois que a utopia pedagógica começa a virar pó de giz.

Na sala dos professores, o café esfriava no canto da garrafa térmica. Uma colega, professora do 5º ano suspirava entre um gole e outro. “Você acredita? Ontem antes se sairmos de recesso perguntei o que os alunos tinham achado da leitura do livro da semana e um aluno me respondeu com um desenho de emoji de carinha dormindo. Fiquei ali, sem saber se era crítica, elogio ou só vontade de me confundir mesmo. Como é que lida com isso?!” Eu não sabia o que responder, e confesso que não sei até hoje.

Vivemos uma era em que a profundidade virou artigo de luxo. Na sala de aula, as conexões humanas disputam espaço com as conexões de Wi-Fi. Ensinar, que já foi arte de encantamento e resistência, tornou-se agora um campo de batalha entre o algoritmo e o afeto. E nós, educadores, vamos ficando pelo caminho, exaustos, desmotivados, mas tentando manter a dignidade da nossa lousa diante de um mundo que desliza o dedo e acha que sabe tudo.

Isso me faz pensar como educar na era do deslize, o cansaço do educador de hoje não é só físico é algo existencial. Não é apenas o acúmulo de tarefas, a sobrecarga de turmas, os salários defasados ou a eterna ausência de políticas públicas efetivas para a educação. É um cansaço da alma. Uma exaustão de ter que competir com o TikTok, com o Google, com a inteligência artificial que responde em segundos o que levamos anos para entender.

Outro dia, deixei como tarefa para a minha turma uma reflexão sobre o que tinham entendido da história que lemos em sala. No outro dia, em nossa roda de conversa, levantei a mão com entusiasmo e perguntei: “Então, pessoal, o que o personagem queria com aquela carta misteriosa no final do livro?” Um dos alunos, muito sincero, respondeu sem pestanejar: “Ah, professor, eu perguntei pro meu tablet e ele já me disse tudinho. Tá tudo no Google. Nem precisei pensar!”

Sorri, meio incrédulo e meio encantado com a espontaneidade, e respondi com aquela voz de quem tenta semear alguma reflexão: “Sabe, fulano, a resposta pode até estar no Google, mas o entendimento… ele mora é na cabeça da gente.”

Ele me olhou com uma cara de quem ouviu um feitiço do Harry Potter. Ficou quieto por uns segundos e depois disse: “Ah… então tem que pensar também?” Dei risada. Ele também. E ali seguimos, tentando pensar juntos.

A superficialidade digital não é culpa dos alunos. Eles nasceram imersos nessa lógica. Mas nós, professores, fomos jogados nela. Não tivemos tutorial, não recebemos senha de administrador, nem manual de instruções. Fomos atualizados à força. Um reboot pedagógico em plena aula de recuperação.

Carregamos nas costas o peso de ser aquilo que leva o aluno a atravessar um caminho rumo ao conhecimento. Ser professor hoje é como ser ponte em uma era de drones e infelizmente as pessoas não querem atravessar contigo. Querem sobrevoar. Mas nós insistimos: “Venham, eu ainda ensino a pisar firme no caminho”. Alguns atravessam. Outros zombam da ponte, gravam um Reels e voltam pra casa achando que aprenderam algo.

E é aí que bate o cansaço. O cansaço de ver o valor do conhecimento sendo medido por likes. De ver o esforço da aula ser ignorado por um vídeo de 15 segundos que promete aprender matemática com funk em 3 minutos. O cansaço de preparar uma sequência didática envolvente e ouvir no final: Não tem resumo no YouTube, professor?

É o cansaço de quem não desiste, mas já pensou em parar. De quem sonha com uma educação transformadora, mas precisa lidar com a realidade de escolas sucateadas, currículos engessados e uma sociedade que, ironicamente, só lembra do professor no dia 15 de outubro, e mesmo assim, se sobrar tempo no feed.

E assim vamos sobrevivendo com poesia e café frio, pois apesar de tudo, resistimos. Porque ensinar ainda é, para muitos de nós, um ato de fé. Fé no outro, fé no futuro, fé de que cada aula pode ser a fagulha de algo maior. E mesmo quando ninguém assiste até o fim da nossa explicação, como nos vídeos que eles mesmos pulam aos 10 segundos, seguimos até o último slide, até a última vírgula.

E, vez ou outra, algo inesperado acontece, um aluno se aproxima no final da aula e diz: “Professor, achei engraçado quando o personagem falou que ia fugir com o cachorro só porque tiraram o celular dele. Ele estava só brincando, né?” E pronto. Meu dia estava ganho. Porque ali houve escuta, houve atenção. Houve compreensão além das palavras. Um mergulho curioso em meio ao mar raso das distrações. Ou quando um ex-aluno volta à escola só para dizer que está cursando pedagogia porque “um dia, lá no 5º ano , sua aula sobre o Pequeno Principe me fez querer escrever”. E então o cansaço parece menor. O desânimo se recolhe. A alma respira.

Estamos vivendo tempos em que o conhecimento virou produto de prateleira. Os alunos, muitas vezes, querem apenas consumir, não construir. Querem respostas rápidas, sem passar pela dúvida. Mas o bom educador sabe, sem dúvida, que não há aprendizagem, é preciso inquietar, não apenas informar.

Enquanto o mundo vive em constante velocidade, o professor sussurra processo, em lutas constantes contra aplicativos que oferecem respostas prontas, nós ficamos insistindo em perguntas que não têm fim. Enquanto os influencers da internet vendem fórmulas mágicas, a sala de aula continua sendo o único lugar onde o tempo é aliado da formação.

É difícil, sim. Às vezes parece que estamos dando murro em nuvem. Mas prefiro isso a não tentar. Prefiro insistir no mergulho profundo do pensamento a aceitar o deslize constante da superficialidade.

Ser professor nos dias atuais é ser como resistência viva e escrever esta coluna é também um ato de resistência. É tentar, com palavras, iluminar um pouco dessa jornada que é ensinar lembrando à sociedade que, por trás de cada profissional bem-sucedido, há sempre um educador que acreditou antes dele mesmo.

Estamos cansados, sim, mas seguimos. Porque sabemos que um bom professor não se mede apenas pelo conteúdo que ensina, mas pela humanidade que desperta.

E, por mais que a tecnologia evolua, nada substitui o brilho nos olhos de alguém que finalmente entendeu, que finalmente se sentiu visto, ouvido, respeitado.

Talvez nossos alunos não percebam agora. Talvez pensem que é só mais uma aula. Mas um dia, quando o mundo cobrar deles aquilo que os vídeos curtos não ensinaram, eles vão lembrar de nós. Vão lembrar que havia alguém ali, diante do quadro, tentando mostrar que a vida é muito mais do que deslizar o dedo sobre uma tela.

E talvez, nesse dia, eles também escolham mergulhar.