Por João Eduardo de Lima Carvalho
Para você que saiu de uma caverna e não conhece as obras do grande John Ronald Reuel Tolkien (ou J. R. R. Tolkien, para os mais íntimos), que inclui a trilogia O Senhor dos Anéis, que foi, sem dúvidas, um dos trabalhos literários mais importantes e populares do século XX, incluindo a presença na lista Le Cent Livres Du Siècle (Os cem livros do Século), do jornal parisiense Le Monde e, que por sinal, teve uma adaptação para a sétima arte e que por sinal também se transformou em uma das produções mais aclamadas da história do cinema, sendo que a trilogia de filmes ganhou, “somente”, 17 estatuetas do Óscar (destaque aqui para o terceiro volume, “ O Retorno do Rei”, que ganhou, sozinho, 11 premiações na aludida cerimonia.
Neste universo fantasticamente criado por Tolkien existe uma criatura chamada Gollum, que outrora fora um Hobbit (resumidamente são, humanos bem pequenos e com pés grandes e peludos), mas que foi corrompido e se transformou em uma criatura horrenda por sua fixação e delírio pelo Um anel, uma ferramenta criada pelo Senhor do Escuro, Sauron, para dominar e governar os povos livres da Terra-Média (muito mais forte e implacável, mas não deixa de ser uma referência ao anel de Giges, da literatura de Platão. Aliás, uma das primeiras demonstrações de poder do Um anel no livro e no filme, foi justamente, deixar o usuário invisível).
Enfim, usamos aqui a referência ao universo de Tolkien para descrever uma outra criatura (e que pertence ao mundo real) fascinada e com imensa ânsia de permanecer no poder, mesmo que isso possa sacrificar a Democracia e nossa República (alguns dos valores supremos que devem ser defendidos a todo custo): os prefeitos e vereadores, mandatários do atual poder nas esferas municipais, que tentam argumentar e justificar uma eventual unificação das eleições em 2022 para, obviamente, permanecerem no cargo por 2 anos além do previamente previsto no ordenamento jurídico pátrio utilizando, de forma covarde, a pandemia para tal.
Essas desprezíveis criaturas que não tem nenhum apreço pela Democracia, pelos princípios republicanos da alternância do poder e a vontade popular, encabeçaram, inclusive um “manifesto”, via Confederação Nacional dos Municípios – CNM, defendendo a prorrogação dos atuais mandatos e a unificação das eleições em 2022. Talvez isso seja uma das coisas mais bizarras e grotescas que já vi. Mais bizarro que votação para aumento de próprio salário, é prefeito e vereador defendendo a prorrogação de seus próprios mandatos.
Para o bem do povo, para o bem da Democracia, da República e da Constituição, as lideranças no Congresso Nacional, os presidentes da Câmara e do Senado, o TSE, a OAB, o próprio Ministério Público Eleitoral (através do vice procurador geral eleitoral), além, claro de uma enorme parcela da comunidade jurídica e politóloga foram, manifestamente e publicamente contrários a essa aberração.
Quando escrevi sobre os especialistas de tudo que não sabem de nada, publicado aqui no Jornal A Tribuna, em 19 de abril de 2020, disse que seria possível e, em certa medida, até provável um adiamento do pleito para o final do ano. Mas que seria praticamente impossível a realização fora deste mandato. E, vimos que esse cenário ocorreu: o calendário eleitoral foi modificado, sendo que o primeiro turno foi para o dia 15 de novembro e o segundo para 29 de novembro, já os prazos que ainda estavam para vencer, foram prorrogados, porquanto os prazos vencidos estão preclusos. Mas, analisando em os resultados políticos desse adiamento, mas sem a bizarrice de prorrogação de mandatos, é um grande passo rumo a uma maturação e um fortalecimento da República brasileira. Existe, evidentemente, uma questão de saúde pública, mas também não podemos, de forma alguma, sacrificar a Democracia. É necessário criar soluções para viabilizar a realização das eleições, sem sacrificar a Saúde Pública e nem os princípios democráticos. E neste sentido, o Congresso Nacional e o TSE responderam à altura dessa necessidade, principalmente quando, se demonstraram totalmente contrários à prorrogação de mandatos e a unificação das eleições em 2022. A partir disto, acredito ser uma necessidade realizar aqui uma breve discussão do porquê é antidemocrático, antirrepublicano, antirracional e, para não dizer, ridículo, querer prorrogar os mandatos dos já eleitos e unificar as eleições em 2022.
Um dos principais e primeiros argumentos utilizados, principalmente pelos defensores deste adiamento (ou por criaturas a mando destes) é de que unificar as eleições seria, supostamente, mais econômico. Essa conclusão é bem forçosa, para não dizer, cega. Em um breve exercício de raciocínio, podemos visualizar que, se temos mais candidatos, temos mais gastos. É muito simples. Vamos aos números: Em 2016, eleições municipais, portanto, tivemos um aproximado de 580 mil candidatos em todos os municípios brasileiros, já no ano de 2018, eleições gerais, o número de candidatos chegou a 26.079 (candidatos válidos). E, com esse número absurdo de candidatos, não podemos esquecer, nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, do inferno gerencial que essa unificação traria para a Justiça Eleitoral. Essa questão é mais técnica e, desta forma, somente as pessoas que trabalham com eleições e política ou acadêmicos e estudantes destas áreas entendem disso (visto que, provavelmente, quem defende unificação de eleições nunca trabalhou nessa área). Imagine você, caro leitor, qual seria a estrutura necessária para registrar essas quase 600.000 candidaturas? E julgar os processos eleitorais no decorrer da campanha? E as prestações de contas no final do pleito? Portanto, o argumento de uma “suposta” economia em unificar as eleições se faz, totalmente, equivocada. Pelo contrário, uma eventual unificação poderia (e provavelmente, iria) encarecer o pleito.
Seguindo nos argumentos, outro recorrente é o famoso “só no Brasil acontecem essas coisas”. Esse “argumento” já é fruto do maravilhoso senso-comum do brasileiro médio (leia-se o “maravilhoso” no sentido mais irônico possível). E isso, obviamente, também é uma mentira. Na verdade, nenhum pais com características parecidas com as do Brasil adotam eleições unificadas. Aliás, os Estados Unidos, dito como o “grande representante” da democracia ocidental não adota o sistema unificado de eleições. Nem a França, nem a Argentina, nem o Chile, nem o Uruguai e nem a terra natal da Democracia, a Grécia. Nem a nossa antiga metrópole Portugal, que realizam os pleitos no mesmo ano, mas em semestres diferentes.
Além do “inferno gerencial”, e de ser uma proposta que atenta contra todos os preceitos republicanos e democráticos (que é o mais grave), e não ter nenhuma fundamentação científica, outro problema latente é a municipalização das eleições gerais ou nacionalização das eleições municipais. Esse problema está ligado ao fato de ocorrer uma interferência das eleições municipais nas gerais ou vice-versa. Os dois pleitos, geral e municipal, possuem características muito específicas. Ou seja, diferentemente do que alegam os defensores da unificação do pleito, o debate político, em uma eleição conjunta, seria sacrificado.
Esta discussão é repetitiva, visto que já fora objeto de análises pelo Congresso Nacional em vários momentos desde a reformulação do Estado brasileiro com a Constituição de 1988 e, em todas oportunidades, essa proposta foi rejeitada. Trazer essa questão à tona novamente demonstra o inconformismo de uma parcela da população que não aceita as regras democráticas de alternância de poder e, essa ideia, nas palavras do professor Gilson Alberto Novais “só passa pela cabeça de interesseiros”. E para completar o raciocínio, ouso ainda afirmar que a unificação de eleições é o terraplanismo da política.
Existem outras inúmeras questões que também comprovam a absurdidade e a irracionalidade dos argumentos que defendem uma unificação de pleitos. Mas, como o artigo já está ficando muito longo, encerrarei por aqui. Infelizmente, essa discussão de unificar eleições não será superada tão cedo, visto constantemente, ela “surge’ na cabeça de algumas figuras no Parlamento ou na sociedade civil, assim como outros pensamentos antirrepublicanos e antidemocráticos, como os gritos delirantes e histéricos pedindo “intervenção militar” ou a esdrúxula “interpretação” do artigo 142 da Constituição (que na cabeça de alguns, colocam as Forças Armadas como “poder moderador da república”), que é uma leitura, no mínimo raquítica, deficitária e forçosa. Infelizmente, uma parte do povo brasileiro ainda não se acostumou com a Democracia e ainda sente saudade da época em que os chicotes de seus mestres estavam em suas costas (parafraseando O Senhor dos Anéis novamente).
João Eduardo de Lima Carvalho – É advogado pós-graduado em Direito Eleitoral é graduando em Ciência Política e reside em Jales (SP).