
Inspirado por espontaneidade e espírito coletivo, o Samba do Russo mantém vivo a ancestralidade do ritmo, celebrando a música como afeto, memória e pertencimento

@leidiane_vicente
A batida do tantã ficou mais silenciosa no último sábado, (14), no Rio de Janeiro, quando o Brasil perdeu o significativo nome do samba Bira Presidente. Ele foi um dos fundadores do grupo Fundo de Quintal e faleceu aos 88 anos, por complicações do câncer de próstata. Sua partida reverberou pelos terreiros e rodas de samba do País e entristeceu aos que encontraram na trajetória do sambista um espelho e uma fonte de inspiração.
Em Votuporanga, o sentimento de luto e celebração se cruzam na roda de samba que, sazonalmente, acontece desde 2023, aos domingos, no Bar do Russo. Por lá, o som continua, com a mesma alma coletiva que Bira tanto ajudou a construir.
Zé Cássio é músico profissional há 15 anos e relembra que a roda começou de forma despretensiosa, no embalo de amigos que estavam em busca de um espaço para tocar.
“A roda de samba surgiu de forma espontânea, em um dia que estávamos à procura de um bar para fazer um samba informal e sem compromisso. Já era 22h e nosso amigo Renato Guimarães comentou sobre o Bar do Russo, onde o pessoal se reunia muito para jogar bilhar”, recorda ele.
Ao chegar no local, foram bem recebidos pelo dono e o público de frequentadores. A partir disso, foi só armar o enredo do improviso.
“Conseguimos tocar e nos divertir, o samba foi até madrugada adentro e a partir de então o Bar do Russo se tornou a nossa casa”, recapitula Cássio sobre o início do tradicional encontro.
Inspirada pelo espírito de comunhão que marcou o lendário Cacique de Ramos, berço do Fundo de Quintal e onde Bira Presidente escreveu seu nome na história do samba, a roda de Votuporanga também nasceu da união entre gerações e da devoção por um gênero que é, acima de tudo, experiência coletiva.
“O samba é isso, não é de ninguém, é feito por muitos e o intuito é celebrar o amor por esta música que é patrimônio imaterial brasileiro. Mas posso dizer que a roda aconteceu pelo encontro de várias gerações, o pessoal mais jovem, como eu, o Dri (Adriano Campos) e o Caprino (Gabriel Gimenez), e o pessoal mais antigo, como o Cacau, Kleber Santos e o Jorginho”, explica o músico sobre o estilo musical que reascende o senso de alegria compartilhada em várias idades.
O nome que batiza o grupo é Samba do Russo, mas, como destaca Zé Cássio, o protagonismo é genuinamente coletivo. Todos cantam juntos, em coro, reforçando a ideia de que o samba é feito de união.
“Nas harmonias estão eu no sete cordas, o Kleber fica no violão de seis, o cavaco fica a cargo do Renan Santos e o Renato Gagliardi, e, também, nosso amigo Juliano, quando pode, vem nos prestigiar com o banjo. Nas percussões temos o primoroso surdo do Cacau, o Dri no tantã, a Natália no tamborim, Dió na timba, Jorginho no Ganzá (e cuíca de boca), e Zé Bondboca no pandeiro. Temos pessoas de fora que também participam da roda, como nosso amigo Tião Taufic, de São José do Rio Preto, que é cantor e pandeirista e o Dota que, recentemente, mudou-se de São Paulo para cá trazendo o auxílio luxuoso de sua cuíca”, nomeia Cássio a formação generosa do grupo.
A força que move a roda é a mesma que sustenta o samba desde suas origens: a simplicidade das relações verdadeiras. O encontro do bar nasceu do desejo comum de tocar os chamados sambas de raiz, aqueles que envolveram gerações antes dos anos 1990, e também da conexão entre amigos que carregam, há anos, respeito mútuo e paixão pela música. É esse elo afetivo que faz o ritmo seguir firme, como um partido-alto bem marcado.
“O samba não é apenas um gênero musical, é a nossa própria história, nosso chão. É a filosofia popular das ruas, de raízes africanas, da poesia dos tambores e, principalmente, da construção da coletividade. No samba não tem palco, nem astros. É uma roda com todos em volta cantando, no mesmo nível. Talvez por isso ele se comunique tanto com todos”, reflete o músico sobre o jeito descontraído do samba.
No Bar do Russo, a programação é espontânea e no improviso, conforme a disponibilidade coletiva. A organização é simples: enquanto o grupo se encarrega da música, o Russo e o pessoal do bar cuidam do cardápio.
“Ora uma feijoada, ora uma carne no tacho, petiscos, torresmo e caldos, sempre uma comida de bar feita com carinho, da melhor qualidade e combinando super bem com samba e cerveja gelada”, associa Cássio.
Quando começa? Quando o povo chega. Quando termina? Quando o coração deixar. “A roda acontece à tarde, depois do almoço. Não tem horário ou duração definida. Mas todas as vezes tocamos por horas, tudo dependendo do dia, da animação e disposição de quem participa”, pontua o músico, os nada pontuais horários da festa.
A roda cresceu junto com o entusiasmo do público. Se no começo bastava o som dos instrumentos e das vozes em coro, hoje o volume da celebração exige estrutura: caixas, microfones e som amplificado. Já passaram por ali mais de cem pessoas em um único domingo, prova de que o samba do Bar do Russo conquistou seu lugar no coração da cidade.
Mas o próximo encontro tem um gosto agridoce.
“Neste domingo, dia 22, faremos um samba de despedida. O Russo vendeu o bar, a direção vai mudar, mas ainda continuaremos realizando o samba. Agora o Russo vem para a roda ao invés de ficar atrás do balcão”, revela Cássio sobre o novo capítulo.
Mais do que música, a roda de samba votuporanguense também movimenta solidariedade. A cada encontro, os músicos convidam o público a levar 1 kg de alimento, em uma corrente do bem que se fortalece a cada batida do tamborim. Toda a arrecadação é organizada por Paulinho e destinada a instituições locais, como a Associação Beneficente Irmão Mariano Dias e a creche Tio Cuim. Segundo ele, cada evento chega a reunir cerca de 250 kg de doações.
Na visão de Zé Cássio, a roda de samba é transcendente e sinônima de pertencimento e coletividade. Um ritual simples e afetivo que começa em domingo de sol, com o ir ao mercado, encontros casuais, cerveja gelada, canto coletivo, dança espontânea e comida compartilhada.
“Um dia comum junto de pessoas, de música e cultura. Afinal, a vida é simples. Como diz João Nogueira ‘melhor é viver cantando as coisas do coração’, menciona ele um trecho da música Clube do Samba.
Entre tantas canções entoadas por vozes diversas, uma composição ganhou o coração da roda. É a música feita em homenagem ao Samba do Russo, de Zé Cássio e Gabriel Gimenez, que virou até placa no bar. Segue uma palinha do refrão:
“(Porque)
Hoje o samba tá pegando aqui no Russo
Esquina com a Paraná, a outra não vou me lembrar
(O quê?)
Cachacinha e litrão pra todo mundo
Bate palma e canta junto pro samba não terminar”
Esta esquina, é um espaço onde o samba não se cala, contudo se reinventa em cada batida, ecoando por novas vozes e caminhos. Porque, como dizia Bira Presidente, “samba é alegria”. E no Bar do Russo, ele segue vivo, no batuque da memória e no abraço da coletividade.