No último dia 2 de novembro foi celebrado o dia de finados, data instituída há mais de mil anos pela Igreja Católica para centralizar em um único dia as homenagens aos mortos.
Longe de querer encarar nestas breves linhas todas as facetas do complexo assunto da morte, filosoficamente já amparou a pergunta do existencialismo – se vamos morrer, por que continuar vivendo? –; o filósofo francês Luc Ferry a coloca como o principal motivo da criação da filosofia; o seu trato está em pauta em todas as religiões: algumas encarando como uma festa de passagem, outras como uma honra, outras de maneira triste; a elaboração de luto está na psicologia; a pulsão de morte está na psicanálise e assim por diante.
No que nos toca, “Antígona” mescla direito, cinema e literatura em torno do direito de prestar as honras fúnebres a um morto. Obra muito rica e de muitas facetas, das quais tomaremos algumas delas.
É a terceira obra literária trágica no formato de peça teatral da chamada trilogia tebana, escrita por Sófocles, que é composta também por: Édipo Rei (talvez a mais conhecida delas devido ao conceito do complexo de édipo utilizado na psicanálise) e Édipo em Colono.
Foi adaptada, homonimamente, ao cinema e dirigida na década de 60 (1961) por George Tzavellas. Houve também, em 2019, uma adaptação livre dirigida pela canadense Sophie Deraspe, que transportou o contexto das cidades-estados gregas para o sócio-político atual, em que Creonte se transforma no Estado.
Basicamente, a peça trata do destino dos filhos de Édipo. Polinices e Etéocles se matam em batalha e o tio deles, Creonte, irmão de Jocasta (esposa e mãe de Édipo), que era quem estava como rei de Tebas, decide proibir que se prestassem honras fúnebres a Polinices. Antígona, irmã dos dois, se sente na obrigação moral de enterrar Polinices, descumprindo a lei de Creonte. Por conta disso é presa e se mata na prisão.
Este é o primeiro texto de História do Direito que se lê na faculdade e à época, leigo no mundo jurídico, me parecia de todo estranho o problema gerado em torno do simples fato de não poder enterrar um corpo morto, já que as batalhas, na Grécia antiga, ocorriam aos montes e possivelmente sempre havia corpos em um e outro lugar não sendo enterrados. Mas a discussão iria mais a fundo.
Enterrar seus mortos não é apenas uma questão religiosa e/ou de tradições sociais e/ou de cumprimento de promessas, mas também carreia o respeito a um corpo com forma humana, em que há poucas horas habitava vida. Desrespeitar um corpo, deixando-o ao relento, ou mesmo esquartejá-lo e “brincar” com seus pedaços, faria com que os próprios vivos perdessem o respeito por si, impactando na convivência social, cuja regulação é um dos papéis do Direito. Este é o fundamento, por exemplo, da criminalização do vilipêndio de cadáver do artigo 212 do nosso Código Penal.
Uma outra questão jurídica a ser debatida é a do eterno embate entre o direito natural, o direito positivo e a desobediência a leis injustas.
Antígona dizia que enterrar seu irmão era uma questão de justiça (parte do direito natural), que estava em oposição à proibição legal do rei Creonte (direito posto ou positivo). E este embate, com a consequente obediência ou com o cometimento de um crime pela desobediência, perpassa todo o Direito até os dias atuais: esta lei é justa? O ideal é que seja, mas nem sempre o é.
Em tese, o direito natural é algo que estaria acima das questões mundanas, carregando valores imutáveis em qualquer parte do mundo, independente da cultura local e dos parlamentos locais; já o direito positivo seria a lei posta, decorrente do jogo político de cada sítio.
Para dar um exemplo: todos sabemos que o consumo da maconha, sem esconderijos, é possível em alguns países, como na Holanda e que no Brasil, ser pego com alguns cigarros de maconha será considerado tráfico de drogas, com pena de crime hediondo, parecida com a de matar alguém. Este é o direito positivo. A pergunta se isso é justo, ou se a lei holandesa persegue mais a liberdade de escolha do que a lei brasileira, é uma questão de direito natural.
Encerrando, quando a resposta a algum embate social se resume a: “é a lei”, não responde nada além das contingências de arranjos políticos locais que se promulgaram em leis; sermos bons e justos com nossos mortos, ou com nossos vivos, está no direito natural ou em nossas consciências e muitas vezes passará ao largo da pauta do Estado.
Bruno Arena – Mestrando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha). Advogado. Instagram @adv.brunoarena. Embaixador Cultural da ACILBRAS. Contato (21) 98337-1838