Voltando aos nossos takes cinematográficos, o tema de hoje acerca da bioética é em homenagem ao dia do médico, cuja criação foi inspirada pelo dia de São Lucas, padroeiro dos médicos para o catolicismo.
O “Clube de compras Dallas” (Dallas buyers club), lançado em 2014 no Brasil, traz como protagonista Ron Woodroof, um ex-cowboy heterossexual (informação importante para o contexto histórico do filme) do Texas, que é diagnosticado com HIV e seu médico lhe dá 30 dias restantes de vida.
A adaptação ao cinema foi baseada em fatos reais da década de 80 e nessa época havia a pecha de que o vírus só se alojava em homossexuais. Woodroof e seus amigos eram possuidores de fortes preconceitos, o que levou ao afastamento entre eles.
O cowboy então começa a aprender sobre a doença e descobre que há casos, cerca de 10%, em que a doença é contraída por heterossexuais que praticam relações sexuais sem proteção, além dos casos já conhecidos de drogas injetáveis e relações homossexuais.
À época estava em experimentação nos Estados Unidos o AZT, uma droga que prometia longevidade aos soro-positivos. Woodroof então suborna um faxineiro do hospital para que lhe desse tal droga, que ainda estava em vias de liberação pela FDA – Food and Drug Administration –, cujo análogo brasileiro é a Anvisa.
No entanto ele piora seu estado de saúde ao consumir sem limites o AZT. Continua então suas pesquisas e descobre que um médico mexicano, cuja licença havia sido cassada, estava tratando os que possuíam HIV à base de vitaminas e algumas outras substâncias de baixo potencial destrutivo. Ron começa então a contrabandear os produtos, que não eram aprovados como medicamentos nos EUA. Por meio de um novo amigo homossexual, que havia conhecido ao longo do seu tratamento com o AZT, expande a venda dos produtos mexicanos, fundando o Clube de compras da cidade de Dallas.
Qualquer semelhança com os tempos atuais de COVID não é mera coincidência, a lógica da relação médico, paciente, regulações estatais por meio de agências reguladora, como o são a FDA e a Anvisa, não se altera. E poderemos entender um pouco este relacionamento com base nos princípios que norteiam a bioética.
De maneira simples, “ética” é o campo do conhecimento humano que trata de como melhor proceder diante de determinadas situações; a “bioética” procura unir os valores da ética em relação aos fatos biológicos, que surgiram devido à aplicação da tecnologia à vida. São questões: uso de células-tronco, eutanásia, aborto, clonagem, etc.
Como já dito em colunas passadas, os princípios são diferentes das regras, pois eles têm um conteúdo aberto e, em geral, há ponderação entre eles para que no caso concreto apenas um prevaleça. O exemplo mais clássico é o da liberdade de informação vs. direito à privacidade. Os meios de comunicação têm direito de informar sobre a vida de alguém famoso e conhecido, mas a pessoa também tem direito à sua vida íntima. A extrapolação de qualquer dos lados será avaliada no caso concreto.
Quatro princípios são bioéticos e também ponderáveis: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Brevemente, a autonomia busca privilegiar a liberdade do ser humano, respeitando suas preferências valorativas; o princípio da não maleficência e da beneficência aparecem juntos, o primeiro tem longa tradição na ética médica e diz que não se deve causar danos ao paciente, o segundo diz que os procedimentos devem ser realizados para o bem do paciente e o princípio da justiça é um conceito universal e amplo que orienta a ponderação dos outros três.
Percebamos então como há muitos anos há o entrelaçamento entre aquilo que o paciente quer (tomar vitaminas mexicanas; tomar ou não vacina contra o Covid; tomar ou não kit contra o Covid, etc); aquilo que o médico prescreve como sendo o melhor para o paciente e aquilo que a burocracia estatal (FDA e Anvisa) admitirá e indicará em seu território como medicação e como política pública (vitaminas mexicanas, vacinas contra a Covid, kits contra a Covid).
O fato é que a teia político-burocrática que envolve a relação secreta entre médico e paciente pode se tornar pouco obedecida socialmente se, por acaso, for maculada por incoerências e lobbies, como vimos ocorrer no filme em comentário e nos tempos atuais de pandemia.
Infelizmente, a administração da vida requerida tanto por médicos, quanto por pacientes e pelo poder estatal, está aberta ao debate técnico-democrático, em que estamos livres para opinar e não livres para não obedecer, ao menos sem incorrer em contrabandos.
Bruno Arena – Mestrando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha). Advogado. Instagram @adv.brunoarena. Embaixador Cultural da ACILBRAS. Contato (21) 98337 1838.