Não é possível tratar da interlocução do direito com o cinema e a literatura sem dedicar linhas à clássica peça teatral shakespeariana, escrita pelo dramaturgo por volta de 1596, e transformada mais recentemente (2004) em filme. Dirigido por Michael Radford, traz Al Pacino como o judeu Shylock e Jeremy Irons como o mercador Antônio.
A peça é encenada nas faculdades de Direito principalmente para tratar dos temas de contrato, da judicialização decorrente do seu não cumprimento e do poder da retórica no convencimento do julgador.
Em seu enredo traz o empréstimo de Shylock a Bassânio, para que este cortejasse Portia, filha do rico Belmont. O judeu pede uma garantia do contrato, que será afiançado por Antônio. A chamada cláusula penal, e aqui está o impactante da peça, não se daria em dinheiro, mas em libra de carne a ser retirada do peito do fiador! Antônio perde seu patrimônio e é levado a juízo pelo judeu, que sofre reviravolta perante o Doge de Veneza.
Como já dissemos nessas colunas sobre Direito e Cinema outras vezes, o recurso às artes para que pensemos o Direito não tem a finalidade de analisarmos à luz do nosso ordenamento jurídico brasileiro atual como enquadraríamos este contrato, do contrário a análise estaria finda dizendo que o objeto do contrato de fiança é ilícito, mas sim devemos utilizar o drama de Shakespeare para repensarmos nossas estruturas jurídicas e notarmos seu contexto histórico.
Historicamente, Shylock pede esta garantia devido à humilhação que ele e sua nação vinham sofrendo por serem judeus e agiotas: eram obrigados a viver em guetos segregados, fora da cidade de Veneza. Vemos aí que o tema do antissemitismo trazido pelo dramaturgo inglês é antigo, não sendo exclusivo da Alemanha hitlerista do século XX, está já no teatro ambientado no XVI.
Passemos ao jurídico, certa vez um amigo me perguntou algo que creio esteja presente no entendimento de muitos leigos em Direito: “por que precisamos de faculdades de Direito e de advogados? Não está tudo escrito nas leis? Não basta ler?”, contraponho com algo que ouvi da professora de contratos na universidade: “Eu tenho ferramentas jurídicas para que nenhum contrato seja cumprido”. Explicando.
Muitas revoluções populares ocorreram no século XVIII, sendo a principal delas a Revolução Francesa. O povo tomou o poder de reis e nobreza e o conferiu primordialmente a um Parlamento (sinônimo de Congresso Nacional no Brasil); no arranjo político, o poder judiciário ainda continuou a cargo da ex-nobreza, mas como havia uma desconfiança natural do povo sobre eles, o Parlamento teria o papel de fazer leis que esmiuçassem ao máximo as situações da vida e os juízes apenas enquadrariam o fato à norma, sendo um juiz “boca da lei”.
Mas, tempo passou, e desde muito já se sabia que o que está em leis nem sempre é o mais justo e com o passar do tempo foi se dando liberdade ao julgador para que ele decidisse com mais justiça no caso concreto, maleando e temperando as leis. Nesta mesma linha, podemos considerar que um contrato seja uma lei entre as partes, então também deve suportar a interferência do julgador na busca da justiça para além da frieza de suas cláusulas.
Qual o problema disso? A sentença, ainda que ganhe em justiça e adequação ao caso concreto, perde em previsibilidade, segurança jurídica, podendo descambar em arbítrio do julgador, que é a grande reclamação sobre os julgados atuais, principalmente os que vêm do Supremo Tribunal Federal (STF).
Tecnicamente, como se dá essa liberdade ao juiz? Por meio de normas jurídicas mais abertas à interpretação, os chamados princípios. Vamos dar um exemplo, um dos fundamentos da República se encontra no art. 1º, inciso III da Constituição Federal: a dignidade da pessoa humana. O que se entende por isso? Qual seria uma indignidade passível de intervenção judicial? Não é possível saber de antemão e estaremos na expectativa da sentença quando questionada em juízo.
Diferentemente seriam as normas mais concretas e fechadas, as chamadas regras. Por exemplo, sobre os atos processuais, art. 212 do Código de Processo Civil: “os atos processuais serão realizados em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas”. Qual a margem interpretativa aqui? Nenhuma, conferindo menos liberdade ao julgador.
Resumindo, nos tempos contemporâneos vige o chamado neoconstitucionalismo, em que as normas jurídicas são um gênero que englobam princípios, mais abertos, e regras, mais fechadas. Como é impossível prever todas as situações por meio de leis, dá-se a possibilidade ao julgador de decidir com justiça no caso concreto, mas, vemos, que às vezes podem extrapolar. O mesmo servirá à feitura de contratos, que, por princípios, como disse minha professora, se poderia deixar de cumprir qualquer um deles, deixando o credor a ver navios.
A história oscila entre maior e menor liberdade ao julgador, mas pelo menos já temos a certeza de que não mais teremos o destino de confisco e ostracismo amargado por Shilock, já é um avanço.