Dia dos NAMORADOS – Do romance ao match

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As configurações dos modelos de relacionamentos amorosos contemporâneos incluem novas formas de interação, que vão muito além do romance tradicional. (imagem divulgação)

No Dia dos Namorados, o psiquiatra e psicanalista José Rubens Naime analisa os novos moldes das relações amorosas, os impactos da tecnologia e o desafio de encontrar afeto em um mundo cada vez mais individualista

 

José Rubens Naime é psiquiatra há 35 anos. Com pós graduação em psicologia, atua também como psicanalista junguiano. (imagem arquivo pessoal

@leidiane_vicente

A cada ano, o Dia dos Namorados parece mais um evento de calendário comercial do que uma celebração genuína do afeto. Enquanto campanhas publicitárias vendem a ideia de relacionamentos perfeitos, milhões de pessoas se frustram em conversas superficiais por aplicativos e encontros que não vão além de algumas horas. Em meio a um mar de expectativas, conexões reais têm se tornado raridade e o amor um produto com prazo de validade.

O psiquiatra e psicanalista junguiano José Rubens Naime, que há 35 anos atua na área da saúde mental, fala sobre como os relacionamentos têm se remodelado ao longo das últimas décadas.

De acordo com ele, as transformações nos relacionamentos amorosos começaram bem antes dos anos 2000.

“Havia colunas nos jornais. Lembro-me de uma da Folha de São Paulo, onde as pessoas publicavam listas em busca de encontros”, relembra Naime.

Com o tempo, essas tentativas migraram para o ambiente digital, como a lendária rede social Orkut e, posteriormente, o e-mail, que passaram a mediar o início de muitas relações.

Em vista da transformação dos celulares em verdadeiros computadores de bolso, agora chamados de smartphones, os encontros presenciais deram lugar às conexões digitais.

“A partir da individualização da comunicação, provocada pela perda dos encontros presenciais, o meio on-line passou a dominar não apenas o trabalho, mas também as amizades e, sem dúvida, os relacionamentos amorosos”, observa o analista sobre a reformulação dos modelos de interação entre as pessoas.

Para o psiquiatra, além das mudanças tecnológicas, consequentemente, vieram as comportamentais. Essa fluidez nas relações afetivas, marcada pela ausência de regras fixas e pela liberdade individual, transformou profundamente a maneira como os vínculos amorosos se formam e se sustentam. Com o enfraquecimento da influência familiar e a perda de rigidez dos antigos códigos sociais, as relações ganharam novas formas e desafios.

“Hoje, as relações se tornaram ‘líquidas’. Não há mais obediência a códigos rígidos de conduta. As famílias não interferem mais na forma de relacionamentos. As religiões tentam reprimir as novas formas de relacionamento, porém não conseguem. O máximo que conseguem é que as pessoas se escondam na forma de viver a sexualidade”, aponta o psiquiatra.

O avanço dos aplicativos de relacionamento não se deve apenas à tecnologia, mas a fatores psíquicos que refletem o comportamento contemporâneo. Esta preferência tem ligação direta com a tendência crescente ao isolamento emocional.

Nesse contexto, os aplicativos de namoro funcionam como espaços onde se busca, de forma idealizada, alguém que atenda às expectativas individuais, muitas vezes desconectadas da realidade e do contato humano direto.

“Primeiro pela facilidade em se isolar e se relacionar com o aparelho eletrônico. O que antes era vivido de maneira social, passou a ser vivido de maneira particular e cada um com o seu desejo”, explana o médico acerca do cardápio humano servido pelos aplicativos virtuais.

Essas plataformas permitem filtrar e idealizar parceiros. Mas até que ponto isso funciona? Naime é cético quanto aos testes de compatibilidade e questionários oferecidos por alguns desses aplicativos, como o eHarmony e o OkCupid.

“Os testes psicológicos apenas apontam desejos comuns e interesses comuns. […] As coisas não são realizadas num nível intelectual, senão tudo viraria enredo de novela. Estes testes atendem principalmente a pessoas inseguras que não conseguem, a partir da interlocução, discriminar o que é bom e o que é ruim e necessitam de um intermediário. […] Mas não servem para o encontro afetivo. Pois cada pessoa tem sua história pessoal e suas experiencias de vida próprios”, elucida ele.

Ao abordar temas delicados como os relacionamentos abertos e a monogamia, Naime é direto e crítico. Segundo a concepção dele, embora os relacionamentos abertos estejam em voga nas conversas contemporâneas sobre afeto e liberdade, raramente funcionam de forma equilibrada e saudável.

“Como o ser humano é movido a sentimentos, principalmente de posse: ciúme e inveja, relacionamentos abertos não costumam dar certo, na maioria das vezes, devido as comparações que acabam sendo feitas entre os parceiros”, diz.

Conforme o psicanalista, essas dinâmicas são pouco impactadas por valores morais e religiosos, contudo vivenciam mecanismos profundos, como os primitivos e instintuais da psique humana.

Quanto à monogamia, o especialista afirma: “Não é natural. Como toda repressão, acaba sendo desrespeitada […] Toda culpa acaba gerando punição, que pode aparecer, por exemplo, nas doenças psicossomáticas, nos suicídios, nas separações traumáticas”, exemplifica Naime acerca de acordos amorosos entre os casais.

Historicamente, a sociedade foi estruturada com base na lógica dos casais heterossexuais, sobretudo por motivos de reprodução e organização social. No entanto, como bem ressalta ele, essa concepção ignora o fato de que, ao longo da história, diversas culturas conviveram de forma condescendente com a homossexualidade. Na Grécia Antiga, por exemplo, a relação entre pessoas do mesmo sexo, especialmente no contexto militar, eram até valorizadas.

Apesar disso, nos países ocidentais, o sofrimento enfrentado por pessoas LGBTQIA+ geralmente está relacionado ao embate com normas sociais rígidas, à rejeição familiar, ao preconceito no ambiente de trabalho e à discriminação cotidiana. “Quando o homossexual se aceita diante dessa orientação (não é escolha, mas orientação), os conflitos que ocorrem são devidos às questões com a sociedade, família, o meio social e o trabalho. Quando o próprio homossexual não aceita sua orientação, os conflitos além de sociais, também afetam a saúde mental da própria pessoa, com ansiedade, depressão e ideias suicidas”, explica o analista quanto ao certame de assumir a sexualidade ou não e o enfrentamento diante de cada escolha.

E mesmo quando há aceitação e formação de casais, o isolamento ainda surge como uma das maiores dores enfrentadas, fruto da exclusão social e da falta de espaços de convivência afetiva plena.

Naime também destaca um importante deslocamento afetivo na sociedade atual: “Com o individualismo e com a sociedade de consumo, a energia que se gasta para manter um relacionamento foi deslocada para prazeres materiais”, examina ele.

Ou seja, comprar, transpôs o amor para outros objetivos que não as relações amorosas. De modo que o que resta são prazeres superficiais e instantâneos.

“O prazer do corpo, do orgasmo são semelhantes ao prazer de comprar. São instantâneos e substituíveis”, contrapõe o psicanalista junguiano.

Essa mudança de foco ajuda a explicar por que, hoje em dia, quem se entrega mais cedo a uma relação é visto como “carente” ou “emocionado”. Vínculos profundos vêm sendo substituídos por conexões passageiras, com baixa exigência afetiva e envolvimento mínimo.

A tradição do casamento e o “felizes para sempre” está, para Naime, perdendo lugar.

“Como as pessoas estão se ligando narcisisticamente ao próprio corpo e as tecnologias, principalmente ao uso do celular, não há lugar mais para o casamento na forma tradicional. Casar significa juntar duas coisas ou duas pessoas, misturar suas histórias, encontrar dentro de si mesmo o significado de ser alguém junto, fazer planos conjuntos”, disserta ele sobre o verbo.

E completa: “Há lugar para relações que começam e terminam nos primeiros conflitos e nas primeiras frustrações. ‘Até que a morte os separe’, se tornou ‘até que os conflitos comecem e os separem’, diz Naime quanto a durabilidade dos relacionamentos.

Em tempos em que o amor se tornou efêmero e moldado por expectativas idealizadas, muitos seguem em busca do par perfeito como quem demanda um produto sob medida, descartando conexões reais diante do menor sinal de imperfeição.

No entanto, como lembra José Rubens Naime, relacionar-se não é encontrar uma metade que nos complete, porém ser inteiro para encontrar alguém igualmente inteiro. Talvez o verdadeiro desafio contemporâneo não seja encontrar o outro, mas sustentar a coragem de permanecer, mesmo diante das imperfeições, dos conflitos e das frustrações que fazem parte do amor real e possível.

“Devemos ser um indivíduo e não individualista. Sonhar com quem queira sonhar conosco e construir com quem queira construir conosco”, finaliza ele.

Neste Dia dos Namorados, em meio à fluidez do mundo moderno, talvez o maior presente seja a coragem de amar com verdade e resgatar a inteireza de ser e estar com o outro.