Por certo um dos temas mais candentes, e com mais vespas quanto possível, é o tema do aborto, por envolver lugar de fala, religião, feminismos, liberdade, violência, política criminal e a divisão entre direita e esquerda.
Pensando na chave da polarização política, pelo senso comum, a esquerda seria a favor da liberdade da mulher poder decidir se gostaria ou não de prosseguir com a gravidez, e a direita pensa que se deve criminalizar para que se evite a prática e se proteja a vida desde a concepção.
Mais uma vez a discussão técnica do Direito Penal vai na contramão dos afetos políticos.
O próprio objeto da discussão já é mal delimitado: discutir a prática do abortamento não é a mesma coisa que discutir a criminalização desta prática.
Parece uma diferença simples, mas muda por completo o âmbito do debate: o abortamento como conduta pode ser discutido no âmbito da moral, das políticas públicas, do político, do religioso, etc., já sua criminalização, é um objeto da Política Criminal.
Para exemplificar, uma pessoa concepcionista, que em decorrência de sua religião ou qualquer outra crença, acredite que a vida começa na união do óvulo com o espermatozoide, considera que o abortamento é um “homicídio” do embrião e não abortaria ou o recomendaria.
Esta mesma pessoa não necessariamente tem que concordar que a melhor maneira de se prevenir tal prática, seja colocando a interrupção prematura da gravidez no Código Penal. Fumar não é crime, nem por isso todos fumam.
A grande questão da Política Criminal é: determinadas condutas ocorrem na sociedade, a melhor maneira de tratar delas é através da sua criminalização?
O que é consenso em se tratando de ciências penais é que o Direito Penal deveria ser sempre a ultima ratio, o que significa? Ele só deve aparecer quando todas as demais medidas que uma sociedade poderia empreender para tratar de algo já deram errado.
Este argumento vale tanto para o abortamento, quanto para o uso de drogas, quanto para o feminicídio: criminalizar estas condutas é uma saída fácil para o Estado (país); tratar dessas mazelas sociais por meio de políticas públicas que é difícil, leva tempo e demanda muito investimento.
O que é mais fácil? Alterar a cultura de desrespeito e violência na sociedade brasileira, principalmente em relação às mulheres, ou tramitar um projeto de lei no Congresso Nacional para colocar alguns incisos no §2º do Código Penal criando o feminicídio?
Usando do simbolismo do Direito Penal, que é sua arma mais forte, o Estado “faz sua parte” e dá uma satisfação; o problema depois passa a ser do criminoso que infringiu a lei e da polícia, não mais de convencimento e de educação.
A mesma lógica vale para a criminalização do aborto por meio dos artigos 124 e 128 do Código Penal. A prática vai deixar de acontecer? Não. A consequência é que ela vai existir na clandestinidade, que é o que acontece com toda conduta que passa a ser criminosa.
Mais uma vez a pergunta: o que é mais difícil? Educar sobre a contracepção, facilitar acesso a métodos anticoncepcionais, dar atendimento psicológico caso a gravidez seja indesejada e a mulher queira abortar, dar amparo à gravidez indesejada e facilitar a adoção por outra pessoa, como acontece nos Estados Unidos, ou colocar artigos no Código Penal dizendo que a prática é proibida? Mais uma vez o Estado “faz sua parte” por meio das leis penais, abandonando as políticas públicas que deveriam ser feitas anteriormente.
Dessarte, a manifestação política por meio da Moção nº 07/2023 da Câmara Municipal de Votuporanga confunde a possível descriminalização do aborto até 12 semanas, com “estímulo ao desrespeito à vida humana”.
Por fim, nunca é demais lembrar que estas colunas políticas se pretendem à elucidação do debate público, sem pessoalidades, para que dessa forma a sociedade possa melhor discutir e decidir. Resumindo o caso da descriminalização do aborto, isso implicaria na retirada dos artigos 124 a 128 do Código Penal e tal conduta deixaria de ser considerada criminosa; o amparo ao nascituro sairia do submundo dos chás abortivos, do autoaborto, das clínicas ilegais ou a viagens para o exterior para a realização da prática, colocando foco nas políticas públicas preventivas de amparo à liberdade da mulher e no acolhimento das mães.
Nosso papel como cidadãos não é facilitar a vida do poder público, mas sim exigir que aja no melhor interesse da sociedade e, em último caso, após vários requisitos, depois da falha de todas as medidas menos drásticas, permitir a criminalização. Não doemos mais poder para que o Estado nos puna, porque um dia poderemos ser nós mesmos em sua mira.
Bruno Arena: Mestre em Direito Penal e Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Especialista em direito penal e direito eleitoral. Presidente do Rotary Club Votuporanga 2022/23. Vice-Presidente da ACILBRAS. Membro do Observatório da Democracia. Proprietário do Cine Votuporanga. Autor e tradutor de livros. Advogado. Instagram @adv.brunoarena.