Como formar leitores num país que lê pouco?

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Alberto Martins Cesário, professor e escritor - Foto: Reprodução

Por Alberto Martins Cesário (Professor e Escritor)

A pergunta que dá título a esta crônica deveria ser, no mínimo, um projeto de nação. Mas, como diz Dona Edith, minha mãe e guerreira aposentada da rede pública: “Sonhar ainda é de graça, professor, mas até pra isso falta tempo”.

Pois é, falta tempo. Falta tempo, falta vontade política, falta salário, falta tinta na impressora da escola, falta biblioteca, falta espaço, falta paz. E, principalmente, falta quem ouça a professora de Língua Portuguesa que, mesmo com 40 alunos em sala, resolve fazer a leitura de Capitães da Areia como se estivesse diante de um auditório repleto de futuros escritores quando, na verdade, mal tem um ventilador funcionando.

Mas, calma. Este texto não é um lamento, é uma travessia.

Formar leitores num país que lê pouco é como tentar ensinar natação a quem nunca viu um rio. A criança, acostumada ao concreto da cidade e ao brilho azulado da tela do celular, vê o livro como um bicho estranho: pesado, sem botão de início, e que exige uma coisa que parece antiquada, a concentração.

E aí está o primeiro ponto: ninguém se torna leitor por decreto. O leitor se forma pelo afeto. E afeto, meus caros, é algo que ainda sobrevive em sala de aula, apesar de todas as tentativas de apagá-lo com metas, relatórios e reuniões sobre reuniões.

Eu me lembro de uma aluna do quinto ano, que chegou para mim dizendo:

— Professor, eu não gosto de livros. Eu só gosto de jogos no celular.

— Mas e se o livro for melhor que o jogo? Eu perguntei.

Ela riu. E riu daquele jeito pré-adolescente, meio debochado. Mas aceitei o desafio. Levei para ela um conto de terror da coleção Hora do Espanto. Expliquei que era de terror, com suspense de verdade. Ela leu por educação. No outro dia, pediu mais. No fim do semestre, tinha virado fã de contos e queria ler a coleção completa que tinha na biblioteca da escola.

O que houve ali? Um milagre? Não. Houve uma conexão. Um caminho possível entre o mundo da aluna e o mundo do livro. Uma ponte construída com tempo, escuta e um pouco de ousadia pedagógica, aquela que os burocratas da educação costumam chamar de “falta de foco no conteúdo programático”.

Dizem que o brasileiro lê, em média, dois livros por ano. Dois. Se formos otimistas. A média mundial é quatro, cinco, às vezes sete. Mas não é sobre números. É sobre cultura. É sobre o ambiente onde o livro é apresentado. A leitura nasce no berço, cresce no colo e floresce na escola quando encontra terra fértil.

E o que temos feito com essa terra? Muitas vezes, desertificamos. Pedimos resumos, provas, cobranças que fazem do livro um objeto de tortura. Como esperar que um aluno goste de ler se a primeira experiência dele com um conto é ter que decorar a cor da camisa de um personagem secundário da página 123?

Claro, a escola tem seus papéis, inclusive o de preparar para o vestibular. Mas e a vida? Quem prepara o estudante para se emocionar com um poema, para questionar um sistema opressor a partir de um romance? Para chorar com Clarice, rir com Veríssimo, se indignar com Carolina Maria de Jesus?

Outro dia, na sala dos professores, escutei um colega desabafar:

— A gente fala, fala, mas eles não escutam. Não leem, não querem saber. Dei um gole no meu café e disse:

— Será que não leem mesmo ou não leem o que faz sentido pra eles?

Ele me olhou com aquela cara de quem já cansou de tentar. E eu entendo. A rotina escolar esmaga. Há professores que dão aula em três turnos, três escolas, cem alunos por dia. Como pedir inovação? Como cobrar criatividade de quem não teve tempo nem de almoçar?

Mas é aí que mora a beleza da profissão: a esperança que se planta em pequenos gestos. O dia em que você leva um cordel para a aula e vê um aluno nordestino brilhar de orgulho. O momento em que uma mãe diz que o filho pediu um livro de presente. A vez em que alguém te escreve, anos depois, dizendo: “Foi na sua aula que eu descobri que gostava de ler”.

Esses são os dividendos do magistério. Não vêm com contracheque, mas alimentam a alma.

É preciso falar também do Brasil que lê, porque ele existe. Existe nas periferias, onde bibliotecas comunitárias resistem com livros doados e voluntários apaixonados. Existe nas escolas públicas onde há projetos de leitura que funcionam graças ao empenho de uma professora que vai além do contrato. Existe no presídio onde um detento lê para reduzir a pena e, sem querer, redescobre a liberdade pelo pensamento.

Formar leitores num país que lê pouco é, antes de tudo, formar pessoas. Não é ensinar a decodificar letras, mas a ler o mundo. É dar ferramentas para que nossos jovens possam escrever suas próprias histórias, em vez de apenas sobreviver nas histórias que lhes foram impostas.

Agora, faço aqui um apelo, não como colunista, mas como professor que ainda acredita. Que cada escola tenha um cantinho de leitura. Que cada professor possa levar um texto diferente sem medo de retaliação. Que cada criança encontre, ao menos uma vez na vida, um livro que a abrace.

E que as políticas públicas, por favor, nos ouçam. Investir em leitura é investir em cidadania. Em saúde mental. Em democracia. Num país melhor. Já passou da hora de entender isso.

E aos leitores destes encontros semanais que acontecem na maioria das vezes todas as terças, especialmente os que ainda acreditam na educação como caminho, deixo um convite: leiam com seus filhos, seus netos, seus vizinhos. Deem livros de presente. Frequentem bibliotecas. Falem de livros na mesa do almoço. Façam da leitura um ato de amor, não uma obrigação.

Porque é assim, de página em página, que a gente reescreve o país.

E se você chegou até aqui, parabéns. Você é exceção. Mas, como disse Guimarães Rosa, “tudo que é bonito, é exceção”.

Até semana que vem.

Professor Alberto Martins, instagram @alberto.prof

(colunista, escritor, professor da rede pública municipal há mais de uma década, e eterno apaixonado por palavras, principalmente as que mudam o mundo)