O conto de Machado de Assis intitulado “O Alienista”, que volta e meia figura na lista de textos exigidos pelos vestibulares, é datado do final do século XIX (outubro de 1881 e março de 1882).
Esse texto tem uma passagem interessante e é o primeiro relato literário de como funcionam politicamente as fake News: “Por exemplo, um dos vereadores,– aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde,– desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema”.
Memorável e genial! Matraca era a maneira que se divulgavam as notícias em Itaguaí, cidade inventada para o conto machadiano. Quando se queira “publicar” algo, saia uma pessoa rodando uma matraca na cidade e ela falava o que era para ser dito. Não havia imprensa.
Sabendo disso, o vereador divulgou sua mentira de educador de cobras e macacos mensalmente, tornando-a verdade pela credibilidade do sistema.
O que ocorreria se todos passassem a usar a matraca como o nobre edil encantador de serpentes? As pessoas desacreditariam da matraca e ela já se tornaria inútil para criar verdades.
Dois são os grandes filósofos que discutiram Ética na história, o primeiro foi Aristóteles, principalmente no seu livro “Ética a Nicômaco”, o segundo foi na modernidade, Immanuel Kant.
Kant dizia que algo era ético e correto se pudesse ser generalizado em algo que ele chamou de imperativo categórico. Por conta disso, mentir seria eticamente errado, pois, por um raciocínio simples, se todos mentissem, não adiantaria alguém mentir, porque a mentira só faz sentido em termos de ganhar alguma coisa com ela, se os outros falarem a verdade.
O século XXI vem sendo chamado da era da pós-verdade, pois é possível propagar qualquer notícia, com infinitas “matracas” pelas redes sociais, em escala massiva e ninguém consegue saber se o que está sendo dito é uma verdade – no sentido de correspondência do que está sendo dito com a realidade objetiva –, ou é mentira para causar tumulto.
Fato é que o modelo de negócio das big techs sociais se baseia no engajamento, no número de curtidas e seguidores.
E o que atrai mais um enxame de pessoas? A violência, a desgraça, a emergência, o caos? Ou um discurso sóbrio, de paz e boas notícias? A resposta vem da morbidez humana.
Esse diagnóstico de como funcionam as mentes das pessoas faz com que a extrema direita global se sobressaia muito mais nas redes sociais do que o discurso democrático, que é dotado de fundamentos e argumentos. Pouca gente está interessada em construir raciocínios e discursos e os que estão interessados não estão nas redes sociais para isso, mas sim buscando se informar melhor em fontes confiáveis, como livros e revistas científicas.
Não é à toa que as universidades são parte dos alvos preferenciais da extrema direita, pois são instituições milenares que prezam pelo rigor científico; professores e alunos são chamados de comunistas e maconheiros, para que sofram com o descrédito e a partir daí se possa dizer que a terra é plana, que a vacina transforma pessoas em jacarés e, o que interessa a esta coluna, que não está havendo problema ambiental algum no mundo.
O estado do Rio Grande do Sul foi praticamente todo destruído; enchentes ocorreram na Bahia há poucos meses e furacões são rotineiros nos Estados Unidos. Até mesmo o Brasil que podia se orgulhar há um tempo de que era privilegiado ambientalmente, não se pode mais.
Deveria então haver uma regulamentação do que se é dito nas redes sociais?
Enquanto o Brasil padece pelo desastre, há um grupo de deputados percorrendo o mundo pregando que nosso país está sofrendo censura na sua liberdade de expressão e que estamos vivendo sob uma ditadura do pensamento.
A mentira, que sempre existiu, deveria ser impedida? Isso seria censura?
Para que pensemos. O que acontece com os mercados quando alguém divulga em larga escala que vai faltar alimentos? Faltarão alimentos. O que aconteceria a um banco se alguém espalhar que o banco vai falir? Todos vão sacar seus dinheiros e o banco vai falir.
Ou seja, a notícia influencia a maneira das pessoas agirem, enviesando seu comportamento salutar; a notícia do caos gera o caos e é nesse ponto que as fake News devem ser reguladas, nas suas consequências.
Nesses tempos em que cada um tem uma “matraca” ao seu alcance, raciocinemos fora das nossas bolhas e de nossas emoções para decidirmos se realmente temos que girá-las.
*Bruno Arena: Mestre em Direito Penal e Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Especialista em direito penal e direito eleitoral. Presidente do Rotary Club Votuporanga 2022/23. Vice-Presidente da ACILBRAS. Membro do Observatório da Democracia. Proprietário do Cine Votuporanga. Autor e tradutor de livros. Advogado. Instagram @adv.brunoarena.